sexta-feira, 27 de maio de 2016

“Angela Merkel é eleita pelos alemães e não por 500 milhões de europeus” - Anne-Marie Le Gloannec

Teresa de Sousa, entrevista em Público

A Alemanha decide e, muitas vezes, os outros sofrem as consequências. Nem a França nem a Comissão conseguem equilibrar o seu poder. Apenas Draghi. A Europa revelou-se mortal e ninguém tem a certeza se é ainda possível salvá-la, diz a investigadora francesa Anne-Marie Le Gloannec.

Anne-Marie Le Gloannec, uma das mas consideradas especialistas francesas da Alemanha, é directora de Investigação do CERI em Sciences Po e investigadora convidada do Instituto Nobel de Oslo. Ensinou na Universidade Libre de Berlim, na Universidade de Colónia e de Estugarda. Escreveu em 1989 uma obra que marcou o debate sobre a unificação alemã: “La Nation Orpheline: les Alemagnes en Europe”. Hoje, reconhece que continua a haver no centro da integração europeia uma “questão alemã”. Critica a forma como Merkel lidera a Europa. Olha para a França com desilusão. Perante a mortalidade da União Europeia, que a crise fez descobrir, pensa que alguma coisa ficará. Está pessimista "mas não totalmente pessimista".

A Europa ainda pode ser salva, agora que descobrimos que ela é mortal? 

Questão muito difícil. É verdade que compreendemos que a União Europeia é mortal, mesmo que, infelizmente, não tenha a certeza de que toda a gente tenha compreendido. Há os que desejam que ela morra. Os que têm medo de que ela seja mortal, que são os pró-europeus, incluindo os governos, a classe política e intelectual e as elites em geral. E depois há uma enorme proporção de pessoas que nem sequer sabem bem o que é União Europeia e que não se interessam por saber se ela vai ou não morrer. Não faz parte da sua paisagem política. Podemos salvar a Europa, sabendo que ela é mortal? Há ainda um modo de salvá-la? Bom, eu sou pessimista, mas não totalmente pessimista. Por um lado, ela vai mal em toda a parte. Mas podemos dizer que não é mais disfuncional do que a América, com Trump, que a Rússia, que é governada por uma ditadura, que o Brasil, que a China…

Mas esses países são nações, nós somos uma União de nações. 

Mas há coisas que ainda se mantêm. Há coisas muito importantes que integram o nosso quotidiano - os direitos, a liberdade, a protecção dos consumidores, o mercado comum, que as empresas europeias querem preservar. Em tudo isto, há leis, há regras comuns e desfazê-las pareceria algo de inacreditável. Até podemos pensar num euro reduzido a meia dúzia de países, mas imagine um mercado comum que se reduz. O que quero dizer é que haverá sempre qualquer coisa que se vai manter.

A diferença é que, até esta crise, nunca tínhamos tido esta sensação de mortalidade.

Exacto, mas o que eu penso é que ela nunca desaparecerá totalmente. Dito isto, há uma multiplicidade de crises, que se reforçam mutuamente e que multiplicam as fracturas. Vivemos crises múltiplas e podemos vir a viver uma crise que ainda nem sequer imaginamos, uma espécie de “Cisne Negro” que nos pode levar a uma crise sistémica de grande dimensão. A eleição de Donald Trump, por exemplo, iria criar uma crise maior, que nos atingiria a todos.

Salvar, mas salvar o quê? O que nós vemos é que há já um bom par de anos o Conselho Europeu passou a ter todos os poderes e isso cria problemas. Primeiro, porque ele está completamente submergido pelas crises e, em segundo lugar, porque, quando se trata de questões como as quotas para os refugiados, pura e simplesmente não funciona.

Cá está uma crise que, lamentavelmente, divide toda a agente.

Já foram tomadas muitas medidas, algumas vão avançar, outras não. Outras ainda, exigem mais tempo, como é o caso da Turquia. Ainda não sabemos se vai haver dispensa de vistos para os turcos porque o Conselho e o Parlamento europeus ainda têm de se pronunciar. Mas, se acabarmos com os vistos, teremos menos refugiados mas mais turcos. Qual será o efeito disto sobre o referendo britânico? Não sei. É extremamente difícil de antecipar. Esta situação da Europa faz-me lembrar um conto que li quando era pequena, passado na Holanda, em que um rapazinho descobre um buraco na mangueira e põe lá o dedo, mas rapidamente descobre que há imensos buracos e que não tem dedos que cheguem. A dúvida que resta é saber se vamos enfrentar um sobressalto de tal dimensão, em que a mortalidade se coloca, levando toda a gente a perceber que é preciso fazer alguma coisa. A alternativa é mergulhar no pânico geral.

Falou de 28 países, mas, nos últimos anos, é apenas um que decide. Continuamos com a mesma questão alemã que herdamos da unificação? 

Absolutamente. E o problema é que Angela Merkel é eleita pelos alemães, e não por 500 milhões de europeus. Ela é responsável perante o eleitorado alemão. Mudou algumas vezes de opinião do dia para a noite, fez várias reviravoltas políticas. Por exemplo, estava disposta a deixar cair a Grécia [em 2010], quando compreendeu que a banca alemã ia perder muito dinheiro. O problema é que ela é muito poderosa e tem um verdadeiro talento, no Conselho Europeu, para convencer uns e outros. Mas não tem sempre uma linha de orientação clara e leva tempo a decidir. E isso, obviamente, causa problemas.

Para os outros.

Sim. Todas as decisões que ela toma vão ter um impacto no resto da União. Por exemplo, na questão dos refugiados, o que se lhe critica, e acho que com razão, é o seu famoso discurso em que propõe uma política de portas abertas. Aliás, essa decisão é mais complicada do que parece. Foi o Departamento Federal para os Refugiados e Migrantes que, desde o início do ano passado, avisou que não tinha meios suficientes para tanta gente e que, por isso, ia aligeirar o procedimento de pedido de asilo. A partir de Agosto, esse afluxo aumentou ainda mais e o mesmo departamento federal disse que deixaria de fazer entrevistas. A mensagem espalhou-se por todo o Médio Oriente e vieram ainda mais. Merkel foi confrontada com esta realidade e teve a inteligência de dizer que a Alemanha conseguiria aceitar o desafio. Simplesmente, quando disse isso, esqueceu-se de que havia vias de trânsito na passagem entre a Grécia e a Alemanha. Inicialmente, a Hungria, a Croácia e a Eslovénia disseram que os refugiados poderiam passar. Mas eles atravessavam as estradas, os campos, as cidades e que é preciso dar-lhes apoios de toda a ordem, o que criou rapidamente uma situação ingerível. Ela não pensou nisso. Foi como no abandono do nuclear [depois de Fukushima], quando decidiu de um dia para o outro, sem pensar nas consequências que a sua decisão teria para os seus parceiros.

Agora decidiu construir um segundo gasoduto, o Nord Stream II, entre a Rússia e a Alemanha, sem consultar ninguém e fazendo o mesmo que Schroeder. 

Faz a mesma coisa, sem sequer falar no assunto. É inadmissível porque já conhecemos as consequências da sua decisão sobre a Polónia e a Ucrânia e boa parte da União Europeia. Há neste momento um excesso de reservas de gás na Europa. A pressa é apenas para satisfazer algumas empresas alemãs. É inaceitável.

E não leva em conta as decisões europeias, por exemplo, em matéria de segurança energética. 

E ela sabe que o negócio do gás é controlado directamente pelo Kremlin e não obedece a nenhuma regra empresarial. Isso é inexplicável da parte de uma chanceler alemã com o seu passado e com os seus princípios.

Como é que se explica esse unilateralismo? Pensa que a Alemanha já estabilizou o seu papel na Europa? 

Não. A crise dos refugiados desestabilizou a chanceler no Conselho Europeu. Antes, ela tinha esse talento de convencer uns e outros. Tinha uma espécie de “toque de mágica”. 
Creio que o perdeu com o caso da Turquia.

Porquê?

Porque é totalmente contraditório com os seus princípios morais e com o que tinha dito antes sobre as portas abertas. Foi um choque ver arame farpado na fronteira da Hungria, quando a mesma Hungria, em 1989, cortou o arame farpado para deixar passar os alemães de Leste para Oeste. Depois, a demografia. Merkel diz há anos que a Alemanha é um país de imigração - é a primeira chanceler conservadora a dizê-lo. Construiu um discurso corajoso e inteligente. Mas concluir um acordo com um Presidente turco cada vez mais autoritário é outra coisa. Erdogan não perde uma oportunidade para gozar com a União Europeia, os direitos das pessoas são ignorados nas universidades, nos jornais. Confia-se a um Governo assim a protecção dos refugiados? É isto que é escandaloso.

Percebe-se que Berlim tenha decidido aproveitar a crise para redesenhar a estrutura económica e monetária da Europa? O resultado abriu feridas enormes.

Sim, podemos dizer isso. E não apenas feridas. Isso coloca um vasto conjunto de questões. Por exemplo, nos anos 90, a Comissão exigiu à Hungria que liberalizasse a economia, o que levou a que os bancos húngaros fossem todos comprados pelos bancos suíços e austríacos, que passaram a oferecer crédito fácil às pessoas que, agora, têm as suas dívidas em francos suíços ou em euros. Vai ser preciso um dia escrever a História para perceber a repetição destes erros através das políticas de austeridade. O que é que os países do Sul podem fazer? Vendem tudo o que têm? Vendem o porto do Pireu aos chineses?

Em Portugal também. 

Eu gostava de saber se a Comissão fez o cálculo de quanto os chineses compraram desde que começou a crise, graças a esta política de austeridade, que liberaliza e vende. Lamento mas o que vejo é um governo chinês completamente autoritário, que controla muitas dessas empresas. Para mim, este é um problema grave. Esta espécie de cegueira em nome de um dogma.

Disse-me uma vez que o drama da Alemanha era ser demasiado grande e, no entanto, demasiado pequena. É esse o drama da liderança alemã? 

É uma frase de Kissinger. É verdade. Mas faltam contrapoderes no seio da União. O único contrapoder é Mario Drahgi e o BCE.

Mas não da França?

Acabou esse papel da França. É uma relação cada vez mais desequilibrada. Não há contrapoder da França, não há da Comissão. É só Draghi. Mas já ouvi dizer em Berlim que, quando terminar o seu mandato, é preciso substitui-lo por um alemão. Merkel cultiva um estilo relativamente ambíguo em matéria de liderança. Aceitou a liderança no caso da Rússia porque era do seu próprio interesse. Tenta estabelecer uma linha intermédia que evite a provocação. Tem uma participação militar na Síria. É uma evolução progressiva. Mas não pode liderar a diplomacia europeia porque não há diplomacia europeia, há apenas uma política de caso a caso.

Como avalia o risco de um "Brexit"? 

Penso que ninguém quer o "Brexit", nem o Governo alemão nem o francês. O risco é se os jovens não votarem ou se acontece alguma coisa de negativo na Europa antes do dia 23 de Junho. Mas custa-me a acreditar. O problema é que, seja qual for o resultado, o referendo vai inspirar outros países, abrindo as portas a uma Europa cada vez mais a la carte: eu quero isto e eu quero aquilo.

O que podemos esperar da França? É um país enfraquecido? 

A maior fraqueza é o problema estrutural da sua economia. A dívida sobe, o desemprego é estrutural, perde quotas de mercado no exterior. Vivemos na ilusão durante muito tempo. Sarkozy ajudou a manter esta ilusão, fingindo que era ele que influenciava a chanceler. Agora a assimetria é demasiado grande para iludir seja quem for.

Mas qual é o papel que a França quer ter? 

Não sei. Creio que pode liderar em questões como o terrorismo e na crucial partilha de informação entre um núcleo de países, incluindo a Alemanha. Também sobre a ciberguerra.


Mas ainda tem muitos instrumentos de poder ao seu alcance. Capacidade militar, capacidade nuclear. Assinou um tratado de defesa com Londres.

Não vejo isso assim. Durante muito tempo, havia uma legitimidade política e militar que contrabalançava a sua fraqueza económica em relação à Alemanha. Agora temos a impressão que estamos um pouco isolados e que isso deixou de pesar.

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