quinta-feira, 16 de junho de 2016

GEOPOLÍTICA, VIOLÊNCIA E PATRIARCADO: O VÉU SOBRE AS MULHERES

Rui Peralta, Luanda

Ex-Jugoslávia, 1991-1999, Ruanda, 1994, Serra Leoa, 1991-2002. Se revermos muitas das imagens televisivas que nos mostraram os corpos, concluiremos que muitos desses corpos eram de mulheres. Aliás não foi por acaso que o Tribunal Penal Internacional, em Haia, criou tribunais penais internacionais ad-hoc estabelecendo jurisprudência internacional para casos de violação como arma de guerra, violação como tortura, violência sexual massiva como acto de terrorismo. Toda esta centralização na mulher teve como origem os factos ocorridos nos conflitos atrás referidos. Esta lista poderia continuar se nos focarmos nas guerras no Médio-Oriente, Afeganistão, Iraque, Somália, Líbia, Síria, Iémen, ou no comportamento dos Capacetes Azuis da ONU em alguns dos conflitos mencionados.

O discurso oficial dos USA após o 11 de Setembro remete a tese do Choque de Civilizações, uma tese do senhor Huntington, que tinha como argumento o seguinte: os padrões geopolíticos da guerra-fria seriam reestruturados em torno do conflito cultural entre o Oeste, predominantemente cristão e o Mundo Islâmico, apresentados como intrinsecamente opostos e incompatíveis. Um importante e imponente mecanismo de doutrinamento é colocado em marcha após o 11 de Setembro. Foram desenhadas novas estratégias de domínio cultural local-global (os USA estenderam o compromisso de “luta contra o terror” a todo o mundo, fazendo que essa narrativa converta as restantes sociedades e se tornasse a narrativa dominante, justificação e legitimação da hegemonia norte-americana) e foram efectuados processos internos de militarização da vida quotidiana e dos meios de comunicação social, tornados em instrumentos de propaganda.

A NATO, na tentativa hegemónica unipolar, iniciou um processo de re-territorialização (á maneira imperial, pré-capitalista) cultural, assente na reconstrução do outro. Essa mensagem foi massificada, apresentando-se á opinião pública como ética dominante. O “outro” foi deslocalizado, ilegalizado. Passou a ser um intruso capaz de introduzir-se nas fronteiras imperiais dos USA e da fortaleza europeia sem vistos (e em alguns casos já estava no interior das fronteiras, devido aos “acidentes históricos”), mantendo amplas redes de financiamento e de suporte a “actividades ilícitas”. Esta lógica de domínio atinge o seu absurdo fora dos espaços centrais quando é assumida pelos Estados das periferias (África é um exemplo de bom aluno que fez os trabalhos de casa, mas só nesta matéria. As oligarquias africanas são adversas á internacionalização - alérgicas ao outro - e teimam em manter as suas fronteiras-fortalezas, onde funcionam milhares de funcionários e toneladas de requerimentos, carimbos, taxas e papelada diversa). Nesta perspectiva o Ocidente legitima a violência, bombardeando alguém, sem saber a quem. A geopolítica ocidental passou a definir territórios e fronteiras a esse alguém indefinido e não identificado. O Afeganistão recebeu o primeiro golpe, depois veio o Iraque, depois a Síria, a Líbia…

Enquanto no exterior se actua geopoliticamente, no interior das fronteiras ocidentais actua-se de forma identitária, identificando-se com precisão o inimigo (sempre com uma aparência determinada – o islâmico, o/a homossexual, o ocidentalizado, o emigrante, o imigrante, etc. - e esteticamente marcado) e revia-se a legislação antiterrorista. Criou-se um novo imaginário. O outro passou a ser o inimigo, o eixo do mal. Como esta violência tornou-se corpórea, estética, despertou outras violências, todas com base no mesmo princípio. Por isso as mulheres foram afastadas deste eixo geopolítico, patriarcal a Ocidente e a Oriente, assim como no centro e na periferia. Tornaram-se, elas, as mulheres, objecto deste conjunto de violências que atravessam de forma transversal as relações internas e internacionais, pessoais e interpessoais, profissionais e familiares.

Fez-se crer, durante a invasão ao Afeganistão, que o objectivo era derrubar o regime fascistóide dos Taliban e libertar as mulheres afegãs das suas burcas. Imaginem o absurdo de ver os marines norte-americanos em missão feminista! Esqueceram-se de que os aliados sauditas, por exemplo, espezinham a identidade feminina. Assim como nunca deixaram fazer ouvir as súplicas da Associação Revolucionária das Mulheres Afegãs (RAWA) para acabarem com os bombardeamentos.

A militarização da sociedade, a ingerência e o uso da violência nas relações internacionais, implica o destroçar da cidadania, a revitalização de conceitos machistas próprios das sociedades patriarcais. Territorialidade, espaço, energia, vitalidade, heroicidade, segurança, Poder, guerra, são todas interpretadas nesta perspectiva machista, patriarcal, geradora de violência sobre o outro. Por isso passa despercebida, no estudo das Relações Internacionais, trabalhos e teses femininas, como a da geografa politica Cynthia Enloe, ou o pacifismo feminista da Liga Internacional das Mulheres para a Paz e Liberdade, fundado em Haia, no ano de 1915, ou os diversos trabalhos produzidos por grupos como as Mulheres em Zonas de Conflito, por exemplo, todos eles questionando a concepção militarista das relações internacionais, da segurança nacional, da geopolítica e da geoestratégia.

Os estudos tradicionais geopolíticos tornaram invisíveis as mulheres e mantiveram as suas propostas na invisibilidade. Cobriram-nas com um véu, assim como se encobre a violência sobre as mulheres nos locais de trabalho, a descriminação salarial ou a violência sobre as mulheres exercida no seio da família. Encobre-se, torna-se invisível e inaudível, no lar, nas universidades, nas fábricas, nas escolas, no campo, nas relações sociais, na História, onde se realça coragem e dignidade dos homens e o sacrifício das mulheres, eternas na dor do parto, onde se assumem como mães de homens e de mulheres.

Como se a dignidade fosse uma questão masculina e o sacrifício uma tarefa das mulheres…

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