Nos últimos dois anos, cada vez mais brasileiros escolheram Portugal para viver. Mais qualificados e com mais dinheiro, chegam cansados de um Brasil violento e sem perspetivas de futuro, ao qual não querem voltar. É o início de uma nova vaga imigratória a desenhar-se
rasil é um paciente sem possibilidade terapêutica”, diz Bernardo Albergaria, que de lá saiu há oito meses com o intuito de não voltar. O léxico trai-o: é médico de dupla especialidade e o país onde nasceu sofre de uma doença crónica que se tem vindo a degradar nos últimos anos. O Brasil, insiste, é hoje “uma colónia penal, com quadrilhas que se revesam no poder”. Há dez anos que a ideia de emigrar o perseguia, mas agora tornou-se urgente. “Cansei disso”, desabafa. A situação “deu uma virada, quebrou um limite”. Um limite que a tornou irreversível e fez com que desta vez Virgínia, a mulher, o apoiasse na decisão. Pegaram nos filhos, de 9 e 13 anos, fecharam a casa em Belo Horizonte, estado de Minas Gerais, e alugaram apartamento em Coimbra, onde ele iniciou um doutoramento. Ela, enfermeira com mestrado em cirurgia, demitiu-se do emprego como consultora técnica de produtos hospitalares. Ele deixou o consultório de ortopedia que atendia mais de uma centena de pacientes por mês e conseguiu uma licença sem vencimento como médico legista na polícia civil.
A sua história não é incomum. Nunca o foi, na verdade. Desde os anos 80 que a imigração brasileira configura um fluxo relativamente constante, dependendo da realidade que o país esteja a atravessar a cada momento. Mas se os anos da crise portuguesa levaram muitos brasileiros aqui emigrados de regresso ao seu país, a crise político-económica desencadeada em 2015 no Brasil fez com que, de novo, Portugal fosse visto como destino preferencial. O perfil dessa nova imigração está ainda a ser desenhado, mas já se lhe consegue ver o rosto: têm entre os 30 e os 50 anos, são de classe média ou média-alta, profissionais estabelecidos que encontram no alargamento da formação — doutoramento e pós-doc — ou na abertura de um negócio um pretexto para emigrar, em geral casais com filhos em idade escolar que viajam em conjunto. Que poderiam ficar no Brasil mas simplesmente não querem, invocando o crescimento exponencial da insegurança e da violência com que sempre conviveram. Que não veem um futuro à sua frente, que chegaram a um limite. Que cansaram disso.
“Há hoje uma total ausência de coesão moral a permear a sociedade a todos os níveis”, nota Bernardo. “As pessoas comuns cometem crimes por nada, porque hoje têm uma perceção da impunidade.” O seu trabalho como médico legista forneceu-lhe elementos para avaliar a dimensão das mudanças e concordar com o escritor Nélson Rodrigues quando escreveu que “a consciência social do brasileiro é medo da polícia”. E as recentes notícias do caos no estado do Espírito Santo reforçam-lhe a ideia de que “o que aconteceu lá pode acontecer em qualquer ponto do país, porque sem polícia na rua, o Brasil revela o verdadeiro carácter”.
Segundo diz, aumentou o número de baleados, o número de tiros por baleado e o calibre das armas. O que diminuiu foi a idade das vítimas e dos criminosos, quase sempre entre os 14 os 18 anos. “São recrutados por serem inimputáveis, o que é algo profundo e arreigado.” O filho de 13 anos nunca tinha andado sozinho na rua. E, em Coimbra, descobriu a liberdade de ir e voltar da escola pública a pé.
A perspetiva é de ficar, confessa Bernardo, mas isso “depende de poder”. E poder significa conseguir, primeiro, a equivalência dos diplomas para exercerem as suas profissões em troca de um salário. “Abandonei 20 anos de construção de uma reputação e 15 de carreira contributiva”. Recentemente iniciou um estágio no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. “Voltei a ser interno”, e as palavras não traduzem a expressão de quem deu dois passos atrás com a esperança de dar um para a frente.
Até 2015, o fluxo de imigrantes brasileiros estava em redução e há dois anos voltou a aumentar. Comprovam-no os dados do Ministério da Justiça: se há dois anos 12.244 cidadãos do Brasil receberam a nacionalidade portuguesa, em 2016 esse número aumentou para 17.953. Por outro lado, segundo o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, o Brasil lidera a lista de nacionalidades estrangeiras residentes em Portugal, com 82.590 cidadãos, mais do dobro do que a comunidade cabo-verdiana, que ocupa o segundo lugar.
A relação entre os dois países sempre foi pautada por partidas e chegadas, ora do Brasil para Portugal ora de Portugal para o Brasil, mas talvez a fase atual indicie um movimento de características próprias. “Talvez estejamos a entrar numa quarta fase da imigração brasileira, embora ainda seja cedo para a definir”, opina Jorge Macaísta Malheiros. Este sociólogo do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa situa a explosão dessa imigração no final dos anos 80, “com brasileiros a tornarem-se no primeiro stock de imigrantes em Portugal, à frente de cabo-verdianos e ucranianos”.
Em 2011, com o agravar da crise económica portuguesa, o fluxo decaiu e muitos brasileiros retornaram ao seu país, atraídos pelo que parecia ser o início de um período sólido de crescimento. Que não se cumpriu. E nesta nova vaga que se desenha, “parecem estar a chegar casais mais jovens, em família, e nisto são muito diferentes dos que vieram nos anos 90. Agora não se importam de vir sem garantias, à procura de trabalho”, sublinha Jorge Malheiros.
UM NOVO MODELO DE VIDA
Roberta e Rodrigo Rondon não têm margem de recuo. Vieram para “fugir da loucura”, venderam a casa num bairro de elite ao pé do mar no Rio de Janeiro e já cá estão há um ano e meio. Sem emprego nem qualquer outra fonte de rendimentos, às expensas de uma aposta académica que acreditam vir a abrir-lhes portas profissionais. Para trás ficava um negócio no epicentro da crise — fornecimento de equipamento de helicópteros para a Petrobras — e a consequente deterioração do nível de vida, à qual teriam inevitavelmente de se adaptar.
A opção por Portugal também acarretou perdas. Porque apesar de terem comprado apartamento em Cascais, também perto mar, e de continuarem a investir na educação privada para a filha Manuela, de 5 anos, não reproduziram o estilo de vida típico dos cariocas mais privilegiados. Deixaram de ter ‘babá’ [ama] e empregada a tempo inteiro, e no horizonte há uma incerteza quanto à duração real da estadia portuguesa. “Não sinto insegurança afetiva, é fácil cá estar, falamos a mesma língua. A única dúvida é material”, admite Rodrigo. Assume que tem dois anos para conseguir estabelecer-se cá e ter um rendimento. O prazo é, portanto, apertado.
Para construir as condições de permanência, ela está a fazer um doutoramento na área da educação e ele um pós-doc na do direito. E descobriram “um novo modelo de vida”, como conta Roberta, mais próximo da filha. Manuela “adora cá estar, porque tem os pais a cuidar dela”. Da primeira vez que viajaram ao Brasil, a menina disse: “Não queria ter dois mundos.” Mas no último Natal, “voltou superfeliz, voltou a casa.”
A sensação de estar em casa acompanha também Daniel Faleiros desde que, em 2009, visitou Lisboa. Na altura, somou-a à lista de cidades onde poderia viver, se finalmente concretizasse o desejo antigo de residir na Europa. Quatro anos mais tarde, voltou de férias com a mulher, Analú Oliveira, e ambos estão convictos de que foi cá que fizeram a Beatriz. Há pouco mais de um ano, no meio da confusão política que se instalou no Brasil e que acabou com o afastamento da Presidente Dilma Rousseff, lembraram-se dessas férias. E decidiram arriscar. Psicóloga a trabalhar na área dos recursos humanos, Analú pediu transferência para Lisboa. Daniel, ator com carreira no teatro, manteve uma ponte aérea entre cá e lá.
Na verdade, de um ponto de vista estritamente económico, poderiam não ter vindo. Viviam na mítica Av. Atlântica, em Copacabana, com vista para a praia. Ganhavam bem. Levavam a Bia à escola de bicicleta, tinham ‘babá’ permanente. E mesmo assim a vida não era um mar de rosas. Um dia, ele estava a passear com a filha no bairro e viu-se no meio de um tiroteio. Mais um evento de violência que se somou a um historial já de si carregado: um sequestro relâmpago na adolescência, três assaltos na idade adulta e um stresse pós-traumático que o forçou a parar de conduzir. No entanto, não foi só a violência — que ambos sentiram exacerbar-se nos últimos tempos — que os afastou do Rio.
“Se você tiver a sorte de não te acontecer nada, de ter uma saúde ótima e não ter de usar o sistema hospitalar, a sua vida é maravilhosa. Mas um dia você precisa de auxílio e aí sente o país de facto”, resume Daniel. É nesse ‘país de facto’ que o contraste com Portugal se acentua. Lá, seguro médico e escola privada eram incontornáveis. Cá, utilizam o SNS e a filha frequenta uma creche da Santa Casa. Mas há mais diferenças, como o grau de consumismo que descrevem como “feroz” do outro lado do Atlântico e a própria forma de funcionarem dentro de casa. “Lá nenhum de nós fazia nada que fosse cozinhar ou limpar. Aqui, tivemos que aprender a fazer isso”, diz Analú, não escondendo que gosta dessa mudança e que a considera “um crescimento”. “O brasileiro vive pela aparência, pelos outros, não para si”, concorda Daniel.
Sem data para voltar ao Brasil, a vinda para Portugal só encontrou um senão: mesmo com o rendimento do aluguer do apartamento em Copacabana a servir de suporte, o arrendamento em Lisboa “é caro” e quase inexistente para não turistas. E foram precisos quatro longos meses para encontrar a pequena casa de traça antiga que partilham perto da Alameda.
MAIS AINDA VÃO CHEGAR
Lisboa parece ter substituído Miami no imaginário dos brasileiros com poder aquisitivo para comprar um imóvel fora do Brasil. Hoje, eles são responsáveis por 10% do investimento estrangeiro no sector imobiliário português, segundo a Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária. À frente deles apenas estão os franceses e os britânicos, com 25% e 19%, respetivamente. É a apetecível dimensão do negócio que levou uma portuguesa a tornar-se consultora imobiliária a dedicar-se especificamente ao mercado brasileiro. Sem escritório, publicidade ou página na internet, e pedindo ao Expresso total anonimato para não comprometer o negócio, explica que os seus serviços passam de boca em boca. Há cinco anos que não tem clientes de outra nacionalidade e nenhum deles comprou imóveis abaixo dos 500 mil euros. O máximo que pagaram foi 3 milhões.
“Chegam, hospedam-se em bons hotéis, resolvem tudo numa semana e já aconteceu comprarem a casa à distância”, revela, acrescentando que tem lidado sobretudo com “médicos, advogados e empresários”. Não são necessariamente os ricos do Brasil, são profissionais liberais bem pagos para quem o valor dos imóveis em Lisboa ainda corresponde a um terço dos do Rio de Janeiro. Isto “sem contar com as vantagens fiscais” disponíveis para os estrangeiros que investem no país. Porém, a pressão já começa a fazer-se sentir. “Os preços estão inflacionados e há falta de oferta”, assevera a consultora. Mesmo assim, atende uma média de três novos clientes por mês.
Tudo indica que os números continuem a aumentar. Para Ana Cristina Martes, socióloga da Universidade de São Paulo, “a expectativa é que primeiro partam os mais qualificados e que depois se sigam os demais”, voltando ao fluxo dos anos 90. Isto porque “ninguém está à espera de um milagre nas eleições presidenciais de 2018”. Atento a este movimento está também Pedro Góis, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, que apesar de considerar prematuro falar de uma nova vaga imigratória, admite que possa vir a sê-lo “com a agudização da situação socioeconómica e política do Brasil”.
Justamente a pensar no futuro, Ana Carolina e Alfredo Cardoso acabaram de adquirir um apartamento em Coimbra, mesmo entre o Portugal dos Pequenitos e a Quinta das Lágrimas, que só tencionam usar a tempo inteiro daqui a cinco anos, quando a filha mais velha tiver idade para ingressar na universidade. Até lá, a enfermeira e o médico oncologista pretendem vir a Portugal todos os anos passar férias. “Temos a vida muito organizada no Brasil e antes de emigrar temos de a consolidar economicamente”, dizem ao telefone desde Timóteo, uma cidade de 85 mil habitantes no estado de Minas Gerais.
Donos de uma clínica para tratamentos de quimioterapia, gozam de uma estabilidade da qual não querem abrir mão. Cientes da dificuldade em ver reconhecidos os seus diplomas, só viriam definitivamente se criassem uma outra fonte de rendimento, como “investir noutra casa ou numa loja para arrendar”. Compraram o imóvel numa semana, mas antes disso viajaram pelo país. Escolheram Coimbra por ser central, mais barata do que Lisboa e sobretudo mais pequena, mais próxima daquilo a que estão habituados.
Este não foi o caso de Juliana e Márcio Cerqueira. Porque se recusaram a reproduzir o modo de vida que tinham em Salvador da Baía. “Sou muito crítica. O Brasil virou uma sociedade superficial. As pessoas concorrem umas com as outras o tempo todo”, assume Juliana. No país onde ter empregada interna é obrigatório, e onde — conta ela — mesmo quem não tem meios recorre a este conforto através de ajudas familiares, este casal com cerca de 40 anos optou por não seguir essa via. Eram por isso olhados pelos amigos como “bichos estranhos”. E com razão: o seu percurso tinha-os levado primeiro a Chicago e a Houston, nos Estados Unidos, para estudar gestão de empresas.
A saída do Brasil não foi ditada pela urgência. Márcio tinha cá negócios desde 2013, quando abriu uma empresa de investimento e reabilitação imobiliária, cujos bons resultados mesmo em plena crise portuguesa justificaram a mudança da família. O facto de ele ter vindo ao abrigo do Visto Gold e ela da nacionalidade portuguesa herdada da bisavô materna exemplifica duas realidades típicas da imigração brasileira nos nossos dias. Entre outubro de 2012 e o mesmo mês de 2016, 220 brasileiros receberam Autorização de Residência para Atividade de Investimento, atrás apenas dos chineses. E o recurso à nacionalidade por consanguinidade é um dos motivos que tornam impossível uma verificação rigorosa do número de cidadãos do Brasil que vivem em Portugal, pois desaparecem das estatísticas.
O casal saiu de lá há dois anos, deixou a casa fechada e ainda não sentiu necessidade de voltar. Das duas filhas — Luísa de 5 e Stella 2 anos —, a mais velha ainda pergunta pela “casinha no Brasil”. Mas cada vez mais percebem que vieram para ficar. Prova disso é o apartamento que compraram no Monte Estoril, onde descobriram com alguma surpresa que a maioria dos vizinhos são também brasileiros, interessados em “desligar-se” do passado, de “uma vida blindada e pouco anónima” onde “a polidez acabou”. Em Portugal, diz Juliana, estranhou e depressa entranhou os bons-dias dados na mercearia. Recuperou a cordialidade. “E isso foi muito bom.”
A mesma impressão descreve Bernardo Albergaria, o médico que reside em Coimbra, embora na sua memória a violência do Brasil ainda ocupe muito espaço e o leve a citar, no meio da conversa, os 59.600 homicídios registados em 2016 no seu país — cerca de 10% dos cometidos em todo o mundo. Portugal trouxe-lhe alguma leveza, “uma abertura, um carinho”. E a adaptação foi “mais fácil do que pensava”. A sua vida social ganhou um novo ritmo e é até mais intensa. O filho arranjou namorada portuguesa, a família decidiu não se fechar num gueto. “Sou a favor de não levar o meu país, de me integrar e assimilar”, diz Bernardo. A mulher, Virgínia, resume numa frase um sentimento que é comum a todos os entrevistados nesta reportagem: “Não quero falar mal do Brasil, nem cuspir na mão que nos deu de comer. Quero é uma educação e um futuro diferentes para os meus filhos, contribuir para uma sociedade que me possa dar um retorno positivo.”
Não choram saudade, não transpiram nostalgia, olham para a frente. Mas não renegam o que deixaram para trás. O Brasil não se lhes descola da pele, ainda que, como diz a canção, é pau, é pedra, é o fim do caminho. É página virada. Portugal é o começo.
Cristiana Martins – Luciana Leiderfarb, em Expresso
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