Doutoramento de chefe da PSP mostra consequência pouco falada do crime: o problemático percurso escolar dos menores
Os filhos de mulheres vítimas de violência doméstica têm uma taxa de retenção escolar cinco vezes superior à média nacional. É uma consequência dos atos violentos a que assistem em casa e que tem efeitos negativos no rendimento escolar, além de provocar dificuldades de convívio e interação social. Além disso, mais de metade das crianças e jovens que convivem com situações em que a mãe é agredida (física ou verbalmente) não são sinalizadas junto das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens: quando as queixas são apresentadas, muitas mães dizem que os filhos não assistiram a nenhum episódio de violência, por recearem que as crianças lhes sejam retiradas. Há cerca de 28 mil casos denunciados por ano e os menores sinalizados por terem assistido são cerca de 11 mil.
Estes são os dois alertas apresentados na tese de doutoramento de Miguel Oliveira Rodrigues, que entre 2015 e 2016 estudou a forma como o percurso escolar das crianças e jovens entre os 11 e os 18 anos é influenciado pelo crime que mais vitimiza as mulheres em Portugal e que em 2017 causou a morte a 19 mulheres.
Chefe da PSP, atualmente colocado na esquadra de Odivelas (Divisão de Loures), Miguel Rodrigues é investigador no Centro de Estudos Interdisciplinares em Educação e Desenvolvimento da Universidade Lusófona e viu a sua tese "Violência doméstica e envolvimento parental na escola: perspetivas de mães e filhos" aprovada com distinção a 18 de Dezembro, obtendo o doutoramento em Educação. Nesse documento, que analisou o percurso escolar nos 2.º e 3.º ciclos de crianças e jovens, chegou a conclusões que não surpreendem quem trabalha no terreno com casos deste tipo - como a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) -, mas que não estavam comprovados cientificamente.
Depois de analisar as 700 respostas de mulheres vítimas de violência doméstica e dos seus filhos (350 de cada) aos inquéritos disponibilizados em 277 esquadras da PSP, preenchidos entre abril de 2015 e agosto de 2016, Miguel Rodrigues comprovou que os filhos de vítimas deste crime apresentavam uma taxa de retenção escolar de 56,3% - e destes 87% dos chumbos ocorreram após um episódio de violência doméstica -, enquanto a média nacional era de 10,5%, reportando-se aos anos letivos de 2003-2004 a 2014-2015. Por exemplo, neste último período estiveram matriculados no 2.º e no 3.º ciclos 238 582 e 384 971 alunos, respetivamente. A taxa total de retenção foi de 8,6% e 12,3%.
Não é surpresa para a APAV
Perante esta denúncia, que traduz, como frisou o autor ao DN, o maior e mais abrangente estudo realizado em contexto nacional, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima não se mostra surpreendida pois o trabalho comprova a realidade com que os seus responsáveis convivem diariamente.
"Em Portugal há poucos estudos e tudo o que sabemos é muito empírico. É o que vemos nas casas--abrigo e nos gabinetes de apoio. Muitas vezes estas crianças interrompem o ciclo escolar porque têm de fugir do local onde viviam e depois é a readaptação a uma nova escola, zona, etc.", frisou em declarações ao DN Daniel Cotrim, responsável pela área de violência doméstica e de género na associação (ver entrevista ao lado). O responsável não estranhou o facto de muitas das crianças e jovens que assistem aos maus-tratos não estarem sinalizados. "Também temos essa noção. Não é generalizado, mas ainda existe muito desconhecimento sobre a atuação das CPCJ. As mães evitam dizer que as crianças assistem porque temem que lhes sejam retiradas. Mas isso só acontece em situações limite", explicou .
Escola pouco envolvida?
Quem também não tem conhecimento de dados oficiais sobre a taxa de retenção destas crianças e jovens é Melanie Tavares, coordenadora dos setores da atividade lúdica e da humanização dos Serviços de Atendimento à Criança, onde se insere o Gabinete de Apoio ao Aluno e à Família (GAAF). "Não sei se é cinco vezes ou mais, mas tudo o que são situações de perigo tem impacto emocional e isso vai refletir-se em várias áreas na criança: saúde mental e rendimento escolar", por exemplo. "É impossível estarem concentrados nas atividades académicas quando a sua principal preocupação é a sobrevivência. Na minha opinião, toda a comunidade escolar não está muito sensibilizada para o facto de a violência doméstica afetar o rendimento. Os professores estão muito fechados e não percebem que no meio disto tudo [a alteração de comportamentos ou a diminuição de rendimento escolar] pode estar um caso de violência", salienta a psicóloga. De acordo com a sua experiência, "não há ninguém nas escolas que se dedique a estas crianças para perceber que se estão assim se deve a um caso de violência doméstica, por exemplo".
"O que existe nas escolas são turmas de miúdos com retenções frequentes. Não sabem as causas dessas retenções. Não há ninguém a fazer diagnósticos", acrescenta, lembrando que essa questão podia ser minorada com o apoio dos GAAF - que existem desde 1998 e em 2017 trabalharam em 23 agrupamentos escolares com 2747 alunos sinalizados. "A mais-valia é o trabalho com as famílias, os alunos e as comunidades. Encaminhamos os estudantes para quem pode ajudá--los", lembrou Melanie Tavares.
Opinião um pouco diferente tem José Eduardo Lemos, presidente do Conselho de Escolas (órgão consultivo do Ministério da Educação). "As escolas, pelo menos através dos serviços de psicologia - outras até terão gabinetes com professores e outros técnicos - apoiam e protegem os alunos que vivem problemas de violência doméstica", garante ao DN.
Também o Ministério da Educação, quando questionado sobre o assunto, diz existir apoio a estas crianças e jovens. "Na escola, quando sinalizadas, as situações são comunicadas à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, entidade com competência para agir em situações de risco. Pode haver igualmente encaminhamento para o/a psicólogo/a escolar", respondeu o gabinete de Tiago Brandão Rodrigues.
Comportamento altera-se
Na sua tese, o chefe da PSP, que entrou nesta força de segurança há 12 anos e que tem tido na violência doméstica e seu impacto na educação um dos motivos de trabalho ao longo destes anos - foi um tema pelo qual começou a interessar-se quando trabalhou no programa Escola Segura (2010 a 2015) -, chama a atenção para as alterações de comportamento que os alunos sofrem quando vivenciam este tipo de situações.
"Os comportamentos escolares alteram-se negativamente em 74% dos casos. Crianças e jovens do sexo masculino sofrem alterações comportamentais para maior agressividade/hostilidade e as do sexo feminino ficam mais deprimidas/isoladas", explica ao DN Miguel Rodrigues, que já tem um doutoramento em Educação e mestrado e licenciatura em Serviço Social.
Fonte: DN
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