sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Macroscópio – Inquietações e perplexidades a propósito de assédio sexual

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Quando estava a reunir os textos para esta newsletter dei por mim a notar que é de novo sexta-feira e pela terceira vez em três sextas-feiras vou falar-vos de temas que suscitam muitas dúvidas e inquietações – pelo menos a mim, que não pretendo ter certezas sobre tudo. Temas difíceis, ao mesmo tempo diferentes e semelhantes. Há duas semanas reuni aqui textos sobre a pedofilia e as divisões na Igreja Católica (Será que queremos mesmo conhecer toda a verdade?), a semana passada das reacções extremadas ao caso Serena Williams/Carlos Ramos e sobre como é cada vez mais difícil falarmos uns com os outros (Quando o mundo se tribaliza há culpas a repartir). Hoje vou referir-vos um debate que está a dividir profundamente os Estados Unidos, se bem que tenha sido escassamente noticiado em Portugal: a acusação feita por uma professora de Psicologia que o candidato à vaga no Supremo Tribunal, Brett Kavanaugh, a tentou violar há 36 anos, quando ela tinha 15 anos e ele 17. 
 
Todo o debate está totalmente inquinado pelas circunstâncias políticas: se Brett Kavanaugh for confirmado como juiz do Supremo Tribunal antes das eleições de Novembro, haverá por muitos anos uma maioria conservadora naquele órgão que, nos Estados Unidos, tem muito poder político. Se isso não acontecer, os democratas têm a esperança de, nessas eleições, se tornarem maioritários no Senado, tornando-se assim num muito maior obstáculo às nomeações do Presidente Trump. A denúncia, que era do conhecimento de uma senadora democrata desde o início de Agosto, só se tornou conhecida a poucos dias da votação para a confirmação de Kavanaugh, que deveria ter tido lugar esta semana. Este desmentiu categoricamente as acusações de Christine Blasey Ford (assim se chama a professora) e ambos podem acabar a testemunhar num comité especial do Senado na próxima semana, se bem que isso ainda esteja a ser negociado. 
 
Há uma verdadeira avalanche de artigos na imprensa americana, Kavanaugh parece estar a perder terreno, sobretudo entre as mulheres, mas ambos os partidos sentem que o terreno está minado e, conforme os diferentes círculos eleitorais, vão variando o discurso. No momento em que escrevo a batalha trava-se em torno das condições em que Ford será ou não ouvida, e um exemplo interessante de como este tema pode gerar perspectivas diferentes entre homens e mulheres é-nos dada pelo que escreve um casal, David e Nancy French. O primeiro escreve na National Review, uma publicação conservadora, e o conjunto de artigos que tem escrito sobre esta polémica pode ser encontrado aqui. Dois que merecem atenção são Christine Blasey Ford Must Agree to TestifyDo Democrats Really Believe Christine Blasey Ford Doesn’t Have to Prove Her Claims?, onde notava que “At the foundation of our system of justice is the notion that accusers don’t just have to state a case against the accused, they have to prove their case. The burden of proof varies depending on the situation. At one end is the proof beyond a reasonable doubt of a criminal trial. At the other is the preponderance-of-the-evidence standard of civil court. But in virtually any court, when a person first states their case against an accused, that is just the beginning of the process of proof.”
 
Já a mulher, Nancy, manifestava ontem no Washington Post o seu desalento com a forma como democratas e republicanos têm lidado com o problema dos abusos sexuais. Em If Kavanaugh attacked Ford, what he’s done since doesn’t wipe the slate clean escreve que “One reason I’m not a Democrat is because they’ve been telling women for years that Kennedy’s and Clinton’s support for women, generally, outweighs their interactions with them individually. One reason I’m no longer a Republican is that, more and more, they tell me character doesn’t matter and that people are disposable when power, policies and Supreme Court seats are on the line”.

 
Devo dizer que, pelo que se conhece do grau de acrimónia existente nos Estados Unidos, a expressão pública de opiniões diferentes num casal é um certamente um sinal positivo, até porque lendo outros textos percebemos até que ponto o debate assenta em pressupostos de “eu acredito nela” versus “eu acredito nele” muito misturados com alinhamentos de género e políticos. Dois exemplos que mostram bem esse contraste: 
  • I Believe Her, escreveu Caitlin Flanagan na The Atlantic, um texto onde relata a sua própria experiência – “When I was in high school, I faced my own Brett Kavanaugh” – para concluir: “If Ford’s story is true, Brett Kavanaugh never apologized. He never tried to make amends, never took responsibility for what he did. In my case, the near-rape—as awful as it was at the time and in its immediate aftermath—didn’t cause any lasting damage. But by Ford’s account, Kavanaugh’s acts did cause lasting damage, and he has done nothing at all to try to make that right. And that is why the mistake of a 17-year-old kid still matters. The least we should do is put this confirmation on hold until we can learn more about what happened. If it’s not true, Kavanaugh should be confirmed without a cloud of suspicion. If it is true, we’ll have to decide whether you get to attack a girl, show no remorse, and eventually become a Supreme Court justice. My own inclination is: No.”
  • Já Marc A. Thiessen, que trabalhou com Kavanaugh na Administração George W. Bush, explica no Washington Post porque não se deixa impressionar por provas como a passagem da senhora Ford por um teste do polígrafo, a que voluntariamente se submeteu. Em How much evidence do we need to destroy someone? recorda alguns dos pontos fracos do seu relato: “She can’t remember the date the alleged attack took place. She isn’t even certain about the year (although she reportedly thinks it may have been the summer around the end of her sophomore year when she was 15). She can’t remember whose house she was in. She can’t remember how she got there. She says she didn’t tell anyone about it at the time, not even her closest friends — so there are no contemporaneous witnesses to back her claims. No other women have come forward to say that the young Kavanaugh assaulted them. There is no pattern of bad behavior. Quite the contrary, by all accounts other than Ford’s, he treats women with respect in his personal and professional life. (...) The gathering included just Ford and four others, according to her confidential letter to Sen. Dianne Feinstein (D-Calif.). One man named by Ford as a witness has come forward and not only denied knowledge of the assault but also denied knowledge of the gathering in question. Another, who said he was the “PJ” mentioned in the letter, Patrick J. Smyth, has also denied being at a gathering like the one Ford described.” Havendo contra-argumentos – designadamente ter relatado o caso em 2012 numa sessão de psicoterapia de casais –, o que este autor argumenta é que “With the evidence available right now, there is no chance Kavanaugh would be convicted in a court of law. Indeed, no reasonable prosecutor would agree to bring a case. But in the court of public opinion, the standards of evidence seem to be much lower. This much is certain: The standard of evidence to ruin a man’s reputation cannot be zero.”
 
E é precisamente aqui que entramos num terreno que me parece no mínimo pantanoso – e espero não estar a ser influenciado pela minha condição de homem branco sexagenário (e casado com a mesma mulher desde os 18): no tempo do movimento #MeToo por que regras devemos guiar-nos? No tempo do #MeToo vale mais a simples suspeita ou a condenação formal? No tempo do #MeToo o que é que eu tenho de realmente provar para destruir a reputação de alguém? Nada?

 
Esta questão remete para outra controvérsia destes dias, a saída de Ian Buruma da direcção da New York Review of Books. Ian Buruma é um intelectual holandês respeitadíssimo, autor de obras muito interessantes como A Morte de Theo Van Gogh e os limites da tolerância ou Ocidentalismo - Uma Breve História da Aversão ao Ocidente e aquela revista é a bíblia dos meios intelectuais nova-iorquinos e não só. O que fez Buruma para ter de se demitir de um lugar que ocupava há menos de um ano? Publicou um artigo de Jian Ghomeshi, uma estrela canadiana acusado de assédio sexual por várias mulheres mas absolvido em tribunal. O texto em causa, Reflections from a Hashtag, provocou uma tempestade de tal dimensão que, como se descrevia no New York Times, New York Review of Books Editor Is Out Amid Uproar Over #MeToo Essay. Ghomeshi queixava-se de, mesmo tendo sido absolvido, ser hoje um pária, “constantly competing with a villainous version of myself online.” E foi online que surgiram de imediato as reações:“It caused immediate furor, with some criticizing what they saw as a self-pitying tone, and soft pedaling of the accusations, which included slapping and choking, and had come from more than 20 women, rather than “several,” as Mr. Ghomeshi wrote. Mr. Buruma drew further censure by giving an interview that many interpreted as showing a lack of interest in the accusations against Mr. Ghomeshi.”
 
Num primeiro momento Buruma ainda procurou explicar-se, e fê-lo numa entrevista à Slate, Why Did the New York Review of Books Publish That Jian Ghomeshi Essay?We asked the editor. Foi pior a emenda do que o soneto: ao considerar que lhe interessava mais a argumentação do autor do ensaio do que julgar o seu comportamento, também Buruma passou para o banco dos réus dos cúmplices com os agressores sexuais. Contudo nessa mesma entrevista ele fora claro sobre as suas motivações intelectuais: “The reason I was interested in publishing it is precisely to help people think this sort of thing through. I am not talking about people who broke the law. I am not talking about rapists. I am talking about people who behaved badly sexually, abusing their power in one way or another, and then the question is how should that be sanctioned. Something like rape is a crime, and we know what happens in the case of crimes. There are trials and if you are held to be guilty or convicted and so on, there are rules about that. What is much murkier is when people are not found to have broken the law but have misbehaved in other ways nonetheless. How do you deal with such cases? Should that last forever?
 
Será que alguém prestou realmente atenção? Buruma acha que não e que, como escreve o Guardian, I was 'convicted on Twitter' over essay: “In an interview with the Dutch magazine Vrij Nederland, the writer and academic said he had been “convicted on Twitter, without any due process”. He characterized his fate as “rather ironic”. Mas se lermos a peça do Guardian até ao fim verificamos que não foi só o Twitter – foi também a forma como os campusesuniversitários americanos estão prisioneiros daquilo que lhes impõem as redes sociais e os activistas: “University publishers, whose advertisements make publication of the New York Review of Books partly possible, were threatening a boycott,” Buruma said. “They are afraid of the reactions on the campuses, where this is an inflammatory topic. Because of this, I feel forced to resign – in fact it is a capitulation to social media and university presses.”
 
Não posso deixar de lamentar este ambiente, mas para que os meus leitores continuem a beneficiar de mais do que uma perspectiva aqui ficam mais duas referências, uma a favor do afastamento de Buruma, a outra contra:
  • What Editors Can’t Get Away With in the Age of #MeTooé um texto de Meghan O'Rourke publicado na The Atlantic onde se defende que “By publishing Jian Ghomeshi, Ian Buruma revealed that he didn’t understand a major issue of our time”. Eis uma passagem da sua argumentação: “That the #MeToo movement contains what Joan Didion once called “certain irreducible ambiguities” (in her critique of the second-wave women’s movement) is certainly true. But Buruma didn’t bring us any closer to elucidating those ambiguities. He brought us back to the old model in which the man’s side of the story is accorded a kind of respect that the woman’s isn’t.
  • Ian Buruma: Victim of Sexual Mccarthyismé um editorial de Brendan O’neill no site libertário britânico Spyked onde se defende, por exemplo, que “This affair confirms that any questioning of MeToo is not allowed. Witness also the rage against Matt Damon, Sean Penn, Catherine Deneuve, Anne Robinson and comedian Norm Macdonald, all of whom simply uttered heretical doubts about this new movement in which men can be cast out of work and into the shadows of shame simply upon the accusation of one woman.” Estes incidentes também mostrarão “how difficult it is for public figures to criticise MeToo. And in turn, they show how necessary it is to criticise MeToo. Any movement that becomes this arrogant, this punishing of challenge or rebuke, must be urgently subjected to the light of serious, reasoned debate.”
 
Relativamente longe deste ambiente, para o melhor e para o pior, por cá mesmo assim ainda há quem manifeste as suas perplexidades publicamente, como Maria Filomena Mónica fez numa recente entrevista a Isabel Lucas editada pelo Público, “Não sou capaz de estar feliz mais de cinco minutos”. Depois de recordar a sua própria experiência de jovem extremamente bonita e sexualmente atraente, recorda a passagem por Oxford e compara-a com as escolhas que hoje fazem as suas netas: “Oxford era muito machista, mas as pessoas estavam muito ocupadas, tinham de trabalhar bastante, e estudar bastante, nunca fui vítima de assédio sexual. Agora Oxford está cheio de placards, “se fores sair à noite, telefona para este número”, um número de apoio a raparigas. A minha neta mais velha disse-me noutro dia: nunca faço eye-contact com rapazes na rua. Perguntei porquê. “Não os conheço, tenho um bocado de medo.” Acho que este movimento #MeToo, além de gerar puritanismo, gera medo; dificulta as relações entre rapazes e raparigas.”
 
E pronto, cheguei ao fim, deixando-os porventura baralhados e perturbados, mas com todo um fim-de-semana pela frente para reflectirem. Aproveitem e tenham bom descanso e úteis leituras. 

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