Silvia
Helena Cardoso, PhD & Renato M.E. Sabbatini, PhD
Desde
que o naturalista inglês Charles Darwin propôs, em 1860, sua famosa teoria da
seleção natural, não temos mais dúvidas de que a espécie humana moderna, o Homo
sapiens sapiens, evoluiu a partir de outras espécies, em um contínuo que remete
a um primata que foi, algum dia no passado distante, o "elo perdido"
entre os primatas antropóides ("parecidos com o homem"), e o primeiro
dos hominídeos ("gênero dos homens"). Ao longo do século XX, inúmeras
descobertas paleoantropológicas demonstraram a existência de um grande número
de espécies de hominídeos, como o Australopithecus, todas elas surgidas na
África, em um período que cobre os últimos 5,5 milhões de anos. O crescimento
gradativo da capacidade craniana e do volume do cérebro, o aparecimento da
postura ereta permanente, o surgimento do uso de ferramentas e da cultura
simbólica, o domínio de tecnologias como o fogo e a construção de abrigos, a
caça, etc., tudo isso é bastante evidente a partir do exame do registro
arqueológico dos hominídeos, até o surgimento, 2 milhões de anos atrás, do Homo
habilis ("homem habilidoso") e do Homo erectus ("homem
ereto"), as primeiras espécies que talvez possamos considerar
"humanas", no seu sentido moderno, pois desenvolveram a linguagem
falada complexa, a construção de ferramentas, as vestimentas, o fogo, a cocção
dos alimentos, etc. A capacidade craniana aumentou de 500 cm3 para 1200 cm3
entre os primeiros Homo habilis e o Homo erectus, em pouco mais de um milhão de
anos, embora sua aparência facial continuasse sendo a de um antropóide. Foi
também a primeira espécie humana a ter mobilidade em escala planetária, tendo
se espalhado pelo Oriente Médio, China e Java. Seus sucessores, o Homo sapiens
neandertalensis, surgido há 300 mil anos atrás, e o Homo sapiens sapiens, há
120 mil anos, aumentaram a capacidade craniana para o valor atual (1350 cm3),
invadiram todos os rincões da Terra, mesmo os mais distantes e inóspitos,
desenvolveram as representações simbólicas, como a arte pictórica, a escultura
e a música, os adornos corporais, as armas de guerra, a medicina, a
domesticação de animais, a agricultura, e as crenças espirituais, como as
religiões, o culto ao invisível, os ritos funerais e as superstições mágicas.
Todas essas características e "invenções" eram unicamente culturais e
transmissíveis entre seres humanos através do aprendizado, e são únicas entre
as espécies animais, inclusive outros primatas.
Não
é muito difícil chegar à conclusão que somos realmente muito parecidos
biologicamente com nossos "primos", os grandes primatas antropóides.
Nos tempos de Darwin, um dos eventos que mais influenciou a aceitação de sua
teoria foi a exposição, pela primeira vez, de gorilas vivos no Zoológico de
Londres. As muitas coisas que temos em comum com eles abalou as convicções
profundas dos vitorianos da época, que defendiam que o ser humano tinha sido
criado por Deus como uma espécie totalmente à parte das demais. Por exemplo,
herdamos dos primatas e antropóides algumas características fundamentais tais
como a visão colorida, os dois olhos voltados para a frente, a face plana, o
grande desenvolvimento do neocórtex, e a alta destreza manual, esta última
incomparável a de qualquer outro mamífero. Comportamentalmente, todos os
antropóides são capazes de manipular símbolos, demonstram enorme capacidade de
adaptação ao ambiente através do aprendizado, são capazes de usar ferramentas
para uma variedade de tarefas, utilizam muito os tele-sentidos (visão e
audição) para interagir com o ambiente, possuem transmissão cultural do
conhecimento, têm uma bem-estruturada vida social baseada na tribo, o
comportamento sexual e reprodutivo, e complexas formas de intercomunicação
instraespecífica. Geneticamente também somos muito parecidos: a biologia molecular
determinou, por exemplo, que 98% do
genoma do chimpanzé é igual ao nosso. Em suma, somos "macacos
pelados", como dizia o título de um livro que fez grande sucesso na década
dos 70s, "The Naked Ape", do biólogo inglês Desmond Morris.
Comparativamente a outros mamíferos superiores, somos extremamente
desprotegidos. Não possuímos garras nem presas proeminentes, não temos pele
grossa, temos poucos pelos. Temos limitações em correr, saltar, nadar.
Então,
como esse animal singularmente frágil conseguiu se espalhar por todo o planeta,
sobreviver nas condições mais extremas e ser capaz de dominar todos os tipos de
ambiente, até mesmo o espaço sideral? O
que nos distingüe das outras criaturas vivas? O que nos faz unicamente humanos?
Esta tem sido uma indagação angustiada desde que Darwin nos "tirou" o
status de espécie dominante do universo...
De
fato, o homem possui diversos atributos que os distingüem das outras espécies.
A postura ereta e andar com os membros inferiores permitiu aos membros
superiores ficarem livres para outras funções; a mão preênsil atua como uma
verdadeira ferramenta e permite o desenvolvimento da tecnologia; o
desenvolvimento da fala e da linguagem permitiu formas de comunicação mais
adaptáveis; o alargamento do cérebro relativo ao tamanho do corpo; o
desenvolvimento das interações sociais e culturais: infância e juventude
prolongada, desta forma oferecendo a base para a complexa organização social,
bem como a divisão de tarefas na sociedade, controle sobre o sexo e a agressão.
Finalmente, os seres humanos se expressam como indivíduos. As características
para isto incluem emoção, motivação, a expressão artística e espiritual.
Todas
essas características, direta ou indiretamente, se relacionam ao
desenvolvimento do nosso cérebro. Nossa unicalidade repousa no nosso cérebro. O
enorme cérebro desenvolvido principalmente no córtex cerebral nos dotou de
propriedades que não existem, ou existem de forma primitiva em outros
antropóides. É no córtex que possuímos os mais altos níveis de análise sintética.
É lá que nossa visão do mundo é analizada, planejada e programada para
excecutarmos uma ação.
O
grande desenvolvimento do cérebro, por sua vez, levou ao nascimento daquilo que
o cognitivista americano Steven Pinker denominou de "uma espécie simbólica".
Desenvolvemos, através de símbolos verbais, objetos da realidade e conceitos
abstratos. Além da capacidade verbal do cérebro, desenvolvemos a capacidade de
emitir sons de alta precisão que manipulados por este cérebro simbólico
possibilitou pela primeira vez na escala animal a evolução extragênica: a
evolução cultural, ou seja, a transmissão de símbolos de um ser humano para
outro. Com isso desenvolveu-se o conhecimento, que é uma propriedade única do
ser humano, e que se relaciona com o pensamento e a consciência (que certamente
podem existir em outros primatas não humanos, mas que diferem em um grau muito
amplo em relação à espécie humana).
A
capacidade simbólica do cérebro gerou coisas notáveis como uma habilidade
geneticamente determinada de aprender qualquer língua ou inventar uma nova, por
exemplo, o esperanto e as linguagens de computador. Também gerou a capacidade
especial de inventar melodias, sons harmônicos, dança, elementos simbólicos que
usam provavelmente as nossas estruturas cerebrais responsáveis pela fala,
articulação dos movimentos e pela integração de tudo isso.
Entre
nossas características culturais únicas, a arte é talvez a mais nobre invenção
humana. Imaginem, por exemplo, a
necessidade de recrutamento de bilhões de neurônios, milhares de músculos,
imensa capacidade sensorial, visual e auditiva, a espantosa capacidade de
memória envolvida para saber de cór e executar um concerto para tocar uma
serenata de Chopin ao piano. São bilhões
e bilhões de neurônios, treinados ao longo de anos de prática, espalhados por
todas as regiões do cérebro, e trabalhando em harmonia para produzir um
resultado de uma complexidade inimaginável.
Quando
o homem se tornou um animal tribal, desde que começou a andar ereto, mais de 4
milhões de anos atrás, ele passou a ser um caçador e guerreiro tribal, onde a
cooperação social era um fator importante de sobrevivência. Todos os instintos
sociais humanos se desenvolveram bem antes da esfera intelectual: instinto
maternal, cooperação, curiosidade, criatividade, compaixão, altruísmo,
competitividade, etc., são muito antigos, e podem ser vistos nos antropóides,
também. Mas, o ser humano novamente se distingüe dos outros primatas através de
uma característica mental muito forte: gradativamente desenvolvemos o auto-controle,
ou seja, a capacidade de modificarmos qualquer comportamento social, mesmo que
instintivo, de maneira a torná-lo mais útil para nossa sobrevivência. Quanto
mais disciplinados, e capazes de auto-controle e de planejamento, o quanto mais
nossa mente racional for capaz de dominar a emocional e instintiva, mais
humanos seremos.
Portanto,
a espécie humana também tem o singular dom de dominar o cérebro emocional por
meio do cérebro racional. Isto, acoplado à capacidade de planejar, gerou um
animal capaz de vencer através da inteligência. Todas as suas restrições e
debilidades físicas tomando a espécie dominante do planeta, destruindo e
devassando aquelas que se opõe, ou usando para si aquelas espécies que são
úteis para seu próprio benefício como as bestas de carga, as cobais de
laboratório, alimento, etc.
O
que nos aguarda no futuro? Como será a espécie humana no ambiente que
aprendemos a moldar e reconstruír?
Ainda
é cedo para respondermos. Precisamos, sem dúvida, nos entendermos melhor.
Existem motivos para duvidar que nos próximos 50 anos sejamos capazes de
deslindar o funcionamento das funções intelectuais superiores é a enorme
complexidade do sistema nervoso, para a qual ainda não existem métodos
adequados de estudo. Muitos filósofos
colocam inclusive a dúvida se um cérebro é capaz de entender a si mesmo algum
dia. Talvez a complexidade estrutural e funcional do nosso cérebro seja tão
grande, que jamais poderemos entendê-la: seria necessário ter um cérebro mais
desenvolvido para isso. É possível que o nosso intelecto não tenha sido
construído para entender os átomos ou mesmo para entender a si próprio, mas sim
para promover a existência dos genes humanos. A pessoa que reflete sabe que a
vida é, de alguma forma, incompreensível. Poderemos eventualmente entender a
complexidade do cérebro de um sapo, mas nunca de nós mesmos….
Leitura
Recomendada
- Tattersall, I. Becoming Human. Evolution and Man Uniqueness. Harcourt Brace & Company, New York, 1997.
- Morris, D. The Naked Ape : A Zoologist's Study of the Human Animal. Dell, 1999.
Os Editores
Silvia Helena Cardoso, PhD. Psicobióloga, mestre e doutora em Ciências. Fundadora e editora-chefe da revista Cérebro & Mente. Universidade Estadual de Campinas. Renato M.E. Sabbatini, PhD. Diretor Associado do Núcleo de Informática Biomédica, Universidade Estadual de Campinas. |
http://www.cerebromente.org.br/
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