sexta-feira, 22 de abril de 2016

O Que Nos Faz Unicamente Humanos?

Silvia Helena Cardoso, PhD & Renato M.E. Sabbatini, PhD

Desde que o naturalista inglês Charles Darwin propôs, em 1860, sua famosa teoria da seleção natural, não temos mais dúvidas de que a espécie humana moderna, o Homo sapiens sapiens, evoluiu a partir de outras espécies, em um contínuo que remete a um primata que foi, algum dia no passado distante, o "elo perdido" entre os primatas antropóides ("parecidos com o homem"), e o primeiro dos hominídeos ("gênero dos homens"). Ao longo do século XX, inúmeras descobertas paleoantropológicas demonstraram a existência de um grande número de espécies de hominídeos, como o Australopithecus, todas elas surgidas na África, em um período que cobre os últimos 5,5 milhões de anos. O crescimento gradativo da capacidade craniana e do volume do cérebro, o aparecimento da postura ereta permanente, o surgimento do uso de ferramentas e da cultura simbólica, o domínio de tecnologias como o fogo e a construção de abrigos, a caça, etc., tudo isso é bastante evidente a partir do exame do registro arqueológico dos hominídeos, até o surgimento, 2 milhões de anos atrás, do Homo habilis ("homem habilidoso") e do Homo erectus ("homem ereto"), as primeiras espécies que talvez possamos considerar "humanas", no seu sentido moderno, pois desenvolveram a linguagem falada complexa, a construção de ferramentas, as vestimentas, o fogo, a cocção dos alimentos, etc. A capacidade craniana aumentou de 500 cm3 para 1200 cm3 entre os primeiros Homo habilis e o Homo erectus, em pouco mais de um milhão de anos, embora sua aparência facial continuasse sendo a de um antropóide. Foi também a primeira espécie humana a ter mobilidade em escala planetária, tendo se espalhado pelo Oriente Médio, China e Java. Seus sucessores, o Homo sapiens neandertalensis, surgido há 300 mil anos atrás, e o Homo sapiens sapiens, há 120 mil anos, aumentaram a capacidade craniana para o valor atual (1350 cm3), invadiram todos os rincões da Terra, mesmo os mais distantes e inóspitos, desenvolveram as representações simbólicas, como a arte pictórica, a escultura e a música, os adornos corporais, as armas de guerra, a medicina, a domesticação de animais, a agricultura, e as crenças espirituais, como as religiões, o culto ao invisível, os ritos funerais e as superstições mágicas. Todas essas características e "invenções" eram unicamente culturais e transmissíveis entre seres humanos através do aprendizado, e são únicas entre as espécies animais, inclusive outros primatas.

Não é muito difícil chegar à conclusão que somos realmente muito parecidos biologicamente com nossos "primos", os grandes primatas antropóides. Nos tempos de Darwin, um dos eventos que mais influenciou a aceitação de sua teoria foi a exposição, pela primeira vez, de gorilas vivos no Zoológico de Londres. As muitas coisas que temos em comum com eles abalou as convicções profundas dos vitorianos da época, que defendiam que o ser humano tinha sido criado por Deus como uma espécie totalmente à parte das demais. Por exemplo, herdamos dos primatas e antropóides algumas características fundamentais tais como a visão colorida, os dois olhos voltados para a frente, a face plana, o grande desenvolvimento do neocórtex, e a alta destreza manual, esta última incomparável a de qualquer outro mamífero. Comportamentalmente, todos os antropóides são capazes de manipular símbolos, demonstram enorme capacidade de adaptação ao ambiente através do aprendizado, são capazes de usar ferramentas para uma variedade de tarefas, utilizam muito os tele-sentidos (visão e audição) para interagir com o ambiente, possuem transmissão cultural do conhecimento, têm uma bem-estruturada vida social baseada na tribo, o comportamento sexual e reprodutivo, e complexas formas de intercomunicação instraespecífica. Geneticamente também somos muito parecidos: a biologia molecular determinou, por exemplo, que  98% do genoma do chimpanzé é igual ao nosso. Em suma, somos "macacos pelados", como dizia o título de um livro que fez grande sucesso na década dos 70s, "The Naked Ape", do biólogo inglês Desmond Morris. Comparativamente a outros mamíferos superiores, somos extremamente desprotegidos. Não possuímos garras nem presas proeminentes, não temos pele grossa, temos poucos pelos. Temos limitações em correr, saltar, nadar.

Então, como esse animal singularmente frágil conseguiu se espalhar por todo o planeta, sobreviver nas condições mais extremas e ser capaz de dominar todos os tipos de ambiente, até mesmo o espaço sideral?  O que nos distingüe das outras criaturas vivas? O que nos faz unicamente humanos? Esta tem sido uma indagação angustiada desde que Darwin nos "tirou" o status de espécie dominante do universo...

De fato, o homem possui diversos atributos que os distingüem das outras espécies. A postura ereta e andar com os membros inferiores permitiu aos membros superiores ficarem livres para outras funções; a mão preênsil atua como uma verdadeira ferramenta e permite o desenvolvimento da tecnologia; o desenvolvimento da fala e da linguagem permitiu formas de comunicação mais adaptáveis; o alargamento do cérebro relativo ao tamanho do corpo; o desenvolvimento das interações sociais e culturais: infância e juventude prolongada, desta forma oferecendo a base para a complexa organização social, bem como a divisão de tarefas na sociedade, controle sobre o sexo e a agressão. Finalmente, os seres humanos se expressam como indivíduos. As características para isto incluem emoção, motivação, a expressão artística e espiritual.

Todas essas características, direta ou indiretamente, se relacionam ao desenvolvimento do nosso cérebro. Nossa unicalidade repousa no nosso cérebro. O enorme cérebro desenvolvido principalmente no córtex cerebral nos dotou de propriedades que não existem, ou existem de forma primitiva em outros antropóides. É no córtex que possuímos os mais altos níveis de análise sintética. É lá que nossa visão do mundo é analizada, planejada e programada para excecutarmos uma ação.

O grande desenvolvimento do cérebro, por sua vez, levou ao nascimento daquilo que o cognitivista americano Steven Pinker denominou de "uma espécie simbólica". Desenvolvemos, através de símbolos verbais, objetos da realidade e conceitos abstratos. Além da capacidade verbal do cérebro, desenvolvemos a capacidade de emitir sons de alta precisão que manipulados por este cérebro simbólico possibilitou pela primeira vez na escala animal a evolução extragênica: a evolução cultural, ou seja, a transmissão de símbolos de um ser humano para outro. Com isso desenvolveu-se o conhecimento, que é uma propriedade única do ser humano, e que se relaciona com o pensamento e a consciência (que certamente podem existir em outros primatas não humanos, mas que diferem em um grau muito amplo em relação à espécie humana).

A capacidade simbólica do cérebro gerou coisas notáveis como uma habilidade geneticamente determinada de aprender qualquer língua ou inventar uma nova, por exemplo, o esperanto e as linguagens de computador. Também gerou a capacidade especial de inventar melodias, sons harmônicos, dança, elementos simbólicos que usam provavelmente as nossas estruturas cerebrais responsáveis pela fala, articulação dos movimentos e pela integração de tudo isso.

Entre nossas características culturais únicas, a arte é talvez a mais nobre invenção humana. Imaginem, por exemplo,  a necessidade de recrutamento de bilhões de neurônios, milhares de músculos, imensa capacidade sensorial, visual e auditiva, a espantosa capacidade de memória envolvida para saber de cór e executar um concerto para tocar uma serenata de Chopin ao piano.  São bilhões e bilhões de neurônios, treinados ao longo de anos de prática, espalhados por todas as regiões do cérebro, e trabalhando em harmonia para produzir um resultado de uma complexidade inimaginável.

Quando o homem se tornou um animal tribal, desde que começou a andar ereto, mais de 4 milhões de anos atrás, ele passou a ser um caçador e guerreiro tribal, onde a cooperação social era um fator importante de sobrevivência. Todos os instintos sociais humanos se desenvolveram bem antes da esfera intelectual: instinto maternal, cooperação, curiosidade, criatividade, compaixão, altruísmo, competitividade, etc., são muito antigos, e podem ser vistos nos antropóides, também. Mas, o ser humano novamente se distingüe dos outros primatas através de uma característica mental muito forte: gradativamente desenvolvemos o auto-controle, ou seja, a capacidade de modificarmos qualquer comportamento social, mesmo que instintivo, de maneira a torná-lo mais útil para nossa sobrevivência. Quanto mais disciplinados, e capazes de auto-controle e de planejamento, o quanto mais nossa mente racional for capaz de dominar a emocional e instintiva, mais humanos seremos.

Portanto, a espécie humana também tem o singular dom de dominar o cérebro emocional por meio do cérebro racional. Isto, acoplado à capacidade de planejar, gerou um animal capaz de vencer através da inteligência. Todas as suas restrições e debilidades físicas tomando a espécie dominante do planeta, destruindo e devassando aquelas que se opõe, ou usando para si aquelas espécies que são úteis para seu próprio benefício como as bestas de carga, as cobais de laboratório, alimento, etc.

O que nos aguarda no futuro? Como será a espécie humana no ambiente que aprendemos a moldar e reconstruír?

Ainda é cedo para respondermos. Precisamos, sem dúvida, nos entendermos melhor. Existem motivos para duvidar que nos próximos 50 anos sejamos capazes de deslindar o funcionamento das funções intelectuais superiores é a enorme complexidade do sistema nervoso, para a qual ainda não existem métodos adequados de estudo.  Muitos filósofos colocam inclusive a dúvida se um cérebro é capaz de entender a si mesmo algum dia. Talvez a complexidade estrutural e funcional do nosso cérebro seja tão grande, que jamais poderemos entendê-la: seria necessário ter um cérebro mais desenvolvido para isso. É possível que o nosso intelecto não tenha sido construído para entender os átomos ou mesmo para entender a si próprio, mas sim para promover a existência dos genes humanos. A pessoa que reflete sabe que a vida é, de alguma forma, incompreensível. Poderemos eventualmente entender a complexidade do cérebro de um sapo, mas nunca de nós mesmos….


Leitura Recomendada
Ilustração: uma reconstrução do crânio do Homo habilis, o primeiro ser humano.

Os Editores

 
Silvia Helena Cardoso, PhD. Psicobióloga, mestre e doutora em Ciências. Fundadora e editora-chefe da revista Cérebro & Mente. Universidade Estadual de Campinas.

  
Renato M.E. Sabbatini, PhD. Diretor Associado do Núcleo de Informática Biomédica, Universidade Estadual de Campinas. 
http://www.cerebromente.org.br/

Nenhum comentário:

Postar um comentário