Fui ver O Jovem Karl Marx. Não tinha grandes expectativas quanto ao filme, confesso, e, de facto, não ficará para a história do cinema. Apresenta algumas fragilidades que resultam, basicamente, dos objectivos traçados de fazer um filme que abordasse a História com algum rigor, sem deixar de ser popular.
Carlos Ademar | Tornado | opinião
Mistura difícil de obter, embora não impossível. O filme consegue dar uma perspectiva interessante no que respeita ao contexto histórico, no entanto, em determinados aspectos, o pé fugiu para a chinela e do popular rapidamente resvalou para o dispensável popularucho, designadamente uma fuga à polícia por parte dos jovens Marx e Engels, a fazer lembrar cenas do genial Charlot, mas que num filme destes soa quase a ridículo.
Quer isto significar que o filme não é recomendável? Não! É de grande utilidade em vários aspectos, mas apenas nos interessa aqui abordar um, que se pode traduzir no seguinte: quando as elites instaladas ignoram com insistência os graves problemas das massas populares, emergem forças que tendem a renovar essas elites.
Ascensão de Marx e Engels
A trama assenta num clima social fortemente marcado pela exploração desenfreada da classe operária nas primeiras décadas da Revolução Industrial. Os operários, homens, mulheres e crianças, trabalhavam catorze, dezasseis, ou mais horas por dia e, ainda assim, dificilmente conseguiam ganhar o suficiente para se alimentarem condignamente. Para não falar da total ausência de direitos: assistência na doença, seguro de acidentes, férias pagas, reforma, o direito ao descanso e ao lazer. Nas cabeças daqueles operários, contemporâneos de Marx, estas regalias soariam a ficção científica, se o conceito existisse.
O filme desenvolve-se com as diversas movimentações e os respectivos protagonistas a emergirem na confrontação pela liderança do processo histórico, que visava ultrapassar a situação de exploração insustentável e de miséria generalizada. Termina com a ascensão de Marx e Engels, a criação da Liga Comunista, a publicação do Manifesto Comunista e a Revolução de 1848. Esta estender-se-ia a diversos países europeus e representou, talvez, a primeira grande reacção internacional a uma questão candente que se vinha a intensificar, resposta baseada nas correntes que emergiram e que encontraram enorme acolhimento na classe operária, apenas porque combatiam o status quo, que parecia cimentado para a eternidade.
É nesta perspectiva que o filme se revela de grande utilidade porque traça um paralelo com a actualidade. Assim o quis entender o autor destas linhas. A Globalização desregrada de hoje, em parte, está para os trabalhadores das sociedades ocidentais como a Revolução Industrial esteve para os operários do tempo histórico que o filme abarca.
Partidos anulam a sua essência ideológica
A actual falta de emprego, motivada não só pela automação dos grandes espaços industriais, mas também devido à deslocalização das fábricas para países onde os custos de produção são mais baixos, tem gerado enorme instabilidade social. Fruto de uma conjuntura política internacional, assente nas doutrinas económicas da Escola de Chicago, caracterizadas por uma intervenção mínima dos estados na regulação económica, sustentadas politicamente por Reagan, nos EUA, e Thatcher, no Reino Unido, na década de oitenta do século XX, e agravado o seu efeito pela queda do Muro de Berlim, ganharam raízes e atravessaram fronteiras.
Mesmo os partidos sociais-democratas da Europa Ocidental acabaram por anular a sua essência ideológica ao aderirem ao que ficou para a História como Terceira Via, protagonizada por um dos sucessores de Thatcher na chefia do Governo do Reino Unido, o trabalhista Tony Blair, que rapidamente teve seguidores em todo o mundo ocidental. Não era, de facto, uma terceira via, mas a clara aproximação de uma esquerda humanista às teses económicas então em voga, que apenas servem os detentores do capital. A opção custou caro aos partidos desta família política, levando-os a um rápido desgaste junto do eleitorado por deixarem de responder aos anseios deste. O resultado imediato foi o espaço que estes partidos deixaram de preencher, potenciando o aparecimento de novas e mais radicais organizações políticas, claramente mais à esquerda ou mais à direita.
Desemprego. Leis laborais
O desemprego que grassa por essa Europa foi o argumento de que os estados se serviram para fazerem sistemáticas revisões das leis laborais, retirando ou diminuindo direitos que pareciam cimentados. A justificação pública passava por tornar competitivo o aparelho produtivo; como se fosse possível comparar os custos de produção de uma fábrica onde os trabalhadores contam com um leque vasto de direitos, conquistados ao longo de muitos anos, com uma outra onde esses direitos são quase, ou totalmente, ignorados. A pressão junto dos estados é exercida pelas multinacionais ou pelos seus prestadores de serviços que, diariamente, têm acesso aos meios de comunicação social e, por via disso, vão conseguindo disseminar essa falsidade, alcançando, porém, os seus intentos.
O desemprego arrasta sempre a precaridade laboral a quem consegue arranjar colocação. É melhor ganhar pouco do que nada. É a máxima também muito difundida por patrões e seus lacaios. Milhares de trabalhadores, profissionais com provas dadas ao longo de anos, têm vindo a ser substituídos nas empresas por jovens ou menos jovens, mas com algo em comum: um salário pouco mais do que miserável, se comparado com o que vencia o trabalhador dispensado. Tal situação levou a que uma enorme percentagem de trabalhadores ganhe actualmente o salário mínimo ou pouco mais, fazendo baixar o salário médio, repercutindo-se isso no empobrecimento dos estados, não só pela menor capacidade aquisitiva dos novos trabalhadores, mas também por via das receitas fiscais que estes não podem pagar.
Se juntarmos a todo este descontentamento o grave e já enorme período de indefinição da União Europeia, que nos últimos anos parece existir apenas para favorecer os países mais ricos, ignorando ou castigando mesmo os mais pobres, e ainda o problema dos refugiados, que tem vindo a mexer, e de que forma, no quotidiano do Velho Continente, temos o caldo social que explica os sobressaltos eleitorais que têm assolado as democracias.
Surgimento de neofascistas
Vão surgindo, cada vez com menos espanto do mundo, partidos ou candidatos claramente neofascistas, com resultados que deviam pôr em alerta os democratas, principalmente as elites, no sentido de levá-las a rectificarem os erros cometidos, arrepiarem caminho e ignorarem mais os interesses das grandes multinacionais e sentirem o povo, procurando ir ao encontro dos seus anseios. E, diz-nos a História, ele nunca exige muito senão se sentir ignorado.
Apenas quer ser tratado com a dignidade que merece, que não pode ser posta em causa devido à ambição desmedida dos grandes grupos económicos, os primeiros e grandes beneficiados com esta Globalização desregulada, o grande cilindro que tudo esmaga à sua passagem.
Seria bom para todos os homens de bem que essas lideranças, ainda com espaço e tempo para agir, jamais esqueçam o velho princípio: quando as elites instaladas ignoram com insistência os graves problemas das massas populares, emergem forças que tendem a renovar essas elites. Mas já agora, que não esqueçam também que quando isso sucede em democracia, nascem ditaduras, diz-nos mais uma vez a História. Eles, os aspirantes a ditadores, rondam; esperam pacientemente a oportunidade. Já se sente o seu salivar, enquanto as garras e os caninos crescem.
* Carlos Ademar | Mestre em História Contemporânea, escritor e professor na Escola da Polícia Judiciária
Nenhum comentário:
Postar um comentário