quinta-feira, 30 de junho de 2016

Macroscópio – Schauble, o Brexit e o bode expiatório do costume

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

Schäuble falou, o país político ficou em polvorosa, o país mediático não discutiu outra coisa entre uma reportagem no estágio da selecção e mais uma conferência de imprensa do seleccionador. E o que disse Schäuble? O seguinte: “Portugal estaria a cometer um erro enorme, se não cumprir com os compromissos que assumiu. Portugal teria então de pedir um novo resgate. Os portugueses não querem um novo programa e eles também não precisam se cumprirem com as regras europeias”. As reacções políticas foram as esperadas – dedesvalorização ou condenação (sendo que entre as mais garridas se encontrou, como vem sendo habitual, a de João Galamba no Facebook) – e as reacções da imprensa, como já veremos, variaram. Mas antes de lá irmos, comecemos por reflectir um pouco sobre a forma como os políticos portugueses, e os europeus em geral, se relacionam com Bruxelas. É que, mesmo podendo não parecer, tem tudo a ver com o tema do momento, o Brexit.

Um bom ponto de partida é a intervenção que Durão Barroso fez, na terça-feira, no Estoril Political Forum, organizado pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica. Para o antigo presidente da Comissão Europeia, "Portugal e os outros países têm de ver a União Europeia não como uma potência externa, mas como sendo parte ativa da UE. Se continuarmos sistematicamente a usar a UE como bode expiatório não vamos a lado nenhum", disse. Mais: “Se continuarmos a nacionalizar os sucessos e a europeizar os fracassos, então temos um problema”.

João Miguel Tavares concorda, na sua coluna no Público O bode está cansado de expiar, com esta ideia de Durão Barroso. É mesmo bastante enfático: “Durão Barroso disse uma coisa acertada: se os accionistas de uma sociedade passam o tempo inteiro a dizer que ela não presta, as acções desvalorizam. Com excepção da Alemanha, é isso que todos os países têm feito. Veja-se o caso português e o discurso da autocomplacência: a crise de 2011 e a austeridade foram culpa da troika que nos veio espremer; nós, pobres inocentes, fomos empurrados para um endividamento louco porque os alemães queriam que comprássemos os seus carros. A estratégia é sempre esta: não fomos nós, foram os outros – foi Bruxelas. É uma estratégia tentadora, mas grave, porque o bode está esgotado de tanto expiar. Ou lhe damos uma boa folga ou fenece. E nós com ele.”

Ora há quem queira dar folga ao bode, e quem não o largue. Penso que posso dizer que, entre os primeiros, se conta Helena Garrido, que hoje escreve no Observador a contra-corrente do que foi o coro de protestos contra Schäuble. Em Segundo resgate? Schäuble até foi moderado a jornalista e economista defende que, na verdade, “A probabilidade de Portugal ter de pedir um novo apoio financeiro vai subindo a cada dia que passa. Schäuble poderia até ter acrescentado mais argumentos para mostrar os riscos que Portugal enfrenta.” Depois de explicar que o país está a sofrer as consequências de uma quebra de confiança dos investidores e dos mercados, defende que “Os efeitos mais graves da quebra de confiança têm como epicentro o Governo, por via de decisões que geraram medo em quem investe em empresas, investimentos que não se recuperaram num dia, como nos mercados financeiros. Decisões como suspender a reforma do IRC, anular os concursos das concessões dos transportes, acelerar a reposição dos salários da função pública e reduzir o IVA na restauração podem até ter efeitos orçamentas mínimo – que não têm -, mas têm um enorme impacto na confiança para investimentos que só se recuperam a longo prazo.”

Não há aqui bodes expiatórios que não os que decorrem de escolhas que fazemos em Portugal, um registo que também é de alguma forma o de Camilo Lourenço em Schäuble, esse malvado!, no Jornal de Negócios. Escreve ele, depois de recordar asdeclarações contraditórias do ministro das finanças e do primeiro-ministro sobre o que deverá ser o crescimento da economia portuguesa em 2016 (que o FMI voltou a rever em baixa), que “Se isto continuar, vem aí o resgate previsto por Schäuble (30 mil milhões)? Mas haja a decência de reconhecer que a culpa não é dele; é de Centeno e Costa. É que nós temos péssimo hábito de pôr a culpa dos nossos disparates nos ombros dos alemães.”

Um registo bem diferente é o de André Macedo no Diário de Notícias, que começa o seu texto O novo radical com a seguinte frase: “Wolfgang Schäuble rosnou”. Para ele “É legítimo que Schäuble, falando em nome da Alemanha, desconfie dos números de Mário Centeno e da composição ideológica que sustenta o governo de António Costa. É ilegítimo que diga que o resgate - e o caos que isso representa - está próximo quando nada o sustenta. Aliás, até agora a execução orçamental não se inclina para esse lado, pelo contrário”.

(Pequeno parênteses: sobre a execução orçamental de Maio recomendo a leitura atenta dos números feita por Ricardo Arroja em O Insurgente, no post contabilidade pública, onde chama a atenção para alguns pormenores importantes. Ele nota, por exemplo, que “As receitas efectivas da administração central estão claramente abaixo do esperado, sinalizando o abrandamento da economia, logo, atestando a inverosimilhança da taxa de crescimento (ainda!) prevista pelo Governo”, ao mesmo tempo que “Os pagamentos em atraso por parte do Estado, que estão a aumentar desde Dezembro passado, vão continuar a aumentar.” Para além disso considera que, apesar do discurso oficial, há “gato escondido com rabo de fora”.)


Deixemos porém este choque doméstico com Schäuble e regressemos ao grande cenário europeu onde as peças se continuam a movimentar sem que seja ainda possível ter uma ideia exacta de como poderá decorrer todo o processo, e se no fim ele acabará mesmo com um Brexit. Deixo-vos para já três textos que ajudam a perceber o que se está a passar e procuram responder a algumas dúvidas mais prementes:
Numa altura em que tudo parece acontecer ao mesmo tempo – debates em Bruxelas, luta pela sucessão de David Cameron na liderança dos conservador em no nº 10 de Downing Street, crise aberta no Partido Trabalhista, onde Jeremy Corbin é um líder cada vez mais isolado – vou ficar-me, por hoje, por apenas mais algumas sugestões de leitura soltas e não necessariamente exaustivas – mas espero que interessantes:
  • Theresa May: Britain’s Angela Merkel?, um perfil de uma das principais candidatas à liderança dos conservadores realizado há quase dois anos pelo Financial Times que o jornal britânico agora recuperou. Nele descreve-se a actual ministra do Interior como sendo “the most powerful Conservative woman since Margaret Thatcher”. Pequena passagem de um perfil que a realidade tornou muito actual: “While tough on immigration, May has struck liberal positions in areas such as scrapping Labour’s plans for ID cards and reforming police stop and search powers. But her reputation as a moderniser is not a central part of her political persona. As with Merkel, ideology is not May’s thing. “She is a person who really believes that their function in life is to make things better, neater, more organised and just a bit more effective than they used to be,” says a former colleague.”
  • Roger Scruton : «Le Brexit est un choix éminemment culturel», uma entrevista do Le Figaro (paywall) aquele que é um dos filósofos conservadores mais influentes da actualidade, e defensor do Brexit. É uma conversa interessante com alguém que defendeu a saída do Reino Unido com base em argumentos muito diferentes dos que fizeram a primeira página dos tabloides ingleses. Pequena passagem, sobre o porquê da escolha dos britânicos: “C'est un choix éminemment culturel. Les électeurs ont réagi contre deux effets de l'Union : la nécessité de vivre sous des lois imposées de dehors et la nécessité d'accepter des vagues d'immigrés de l'Europe - surtout de l'Europe de l'Est - dans des quantités qui menacent l'identité de la nation et sa cohésion. Ils veulent reprendre en main le destin de leur nation. C'est la cause profonde de ce vote.”
  • "Brexit": uma oportunidade, um texto de Vítor Bento no Público onde o autor defende um conjunto de reformas ambiciosas que, reconhece, talvez requeiram “uma maior integração política, pois dificilmente haverá disponibilidade para partilhar custos sem partilha dos processos decisórios. Mas será preferível enfrentar esse desafio politicamente – recuperando ao mesmo tempo a aplicação efectiva do princípio da subsidiariedade – a deixá-lo prosseguir sub-repticiamente pela via administrativa em que tem vindo a ocorrer (e que tem vindo a estrangular também aquele princípio)”.

São muitos os debates, e alguns ainda nem começaram. Desta vez é importante que saibamos participar neles, pois a solução que for encontrada para enfrentar a crise do Brexit terá enorme impacto no desenho futuro da União Europeia, e isso não pode acontecer lá longe e com o mesmo tipo de debate vago e vácuo que permitiu, por exemplo, um Tratado de Lisboa que tão poucos conhecem e onde quase ninguém verdadeiramente se reconhece.

Nós estaremos por aqui para ajudar os leitores não apenas a seguir este debate, mas também a reflectirem sobre as visões em confronto. Mas por hoje é tudo. Tenham um bom descanso.

 
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