A demanda por recheios distintos da rendição aos mercados vai acabar produzindo a sua oferta, mas o tempo para as respostas democráticas encurtou
Saul Leblon – Carta Maior, editorial
É o segundo espasmo de morte do neoliberalismo; o primeiro atingiu sua jugular econômica com a crise financeira sistêmica de 2008, da qual o organismo nunca mais se recuperou.
Agora foi a carótida política.
O sangue venoso e o arterial se misturaram espalhando a morte para dentro e para fora dos trilhos do livre mercado até descarrilar seu trem político.
É esse o filme que estreou em circuito mundial neste fim de semana.
Nas telas, o comboio bufa, estrebucha e arrebenta o que encontra pela frente, atrás e dos lados.
Tudo o que era sólido se desmancha no ar.
Mas ficha resiste em cair nos rincões mais aguerridos. Faz parte do desastre negá-lo.
O jornal Valor desta 2ª feira é um exemplo pungente.
Garrafais no alto da página proclamam em meio à montanha desordenada de ruínas a que foram reduzidos os pilares do golpe: ‘Brexit deve ter impacto limitado para o Brasil’.
Sim, tanto quanto um frango desossado da Sadia consegue fazer uma pirueta e parar de pé na Praça dos Três Poderes.
O frango desossado tipo Serra, por exemplo.
A charanga estratégica do golpe desafina mas ele anuncia solene: ‘Distinto público, vamos redefinir a política externa ideológica em direção à maior liberalização dos mercados’.
Dá uma pirueta e se espatifa no picadeiro.
A cerca-lo, leões famintos rugem intenções opostas.
De um lado, a segunda maior economia da Europa troveja seu não a uniões enlaçadas pelo julgo ortodoxo, na sexta-feira; de outro, instintos protecionistas dos americanos cospem fogo pelas ventas de Donald Trump; mais próximo do seu pescoço, a política espanhola reafirma a impotência das soluções convencionais para tirar a economia do atoleiro neoliberal em que se encontra... Etc.
Estivessem algo menos perplexos, os jornalistas embarcados talvez fizessem uma primeira autocrítica dos muitos anos de certezas graníticas.
Admitir que o único chão firme nesse momento são as reservas de US$ 370 bilhões que o ‘lulopetistmo’ acumulou, sob o bombardeio da crônica neoliberal, seria um bom começo.
Mas os tempos são turvos demais para a clareza dos espíritos.
Na Inglaterra, 52% dos eleitores resolveram dar um passo à frente caminhando dois para trás: por uma diferença de 1.269.000 votos, a consulta popular da última sexta-feira decidiu a saída do país da União Europeia.
Dois dias depois, a Espanha foi às urnas pela segunda vez desde dezembro: do Podemos, que decepcionou, ao conservador PP, que venceu, sem liderar, nenhuma força saiu daí mandatada para dar um rumo novo ao ocaso econômico e social em que se encontra o país, após oito anos de terapêutica neoliberal.
Nos EUA, o bafo morno das tempestades traz uivantes advertências de um conservadorismo que já não controla mais a criatura, com jeito de ‘anos 30’, como diz a Economist, que germina em seu ventre.
O desmonte que se aplica a contrapelo das urnas no Brasil deveria ser analisado à luz da gravidade pedagógica do curso tomado pela história nas últimas horas.
Sobretudo os senadores que em breve decidirão um processo ilegítimo de impeachment deveriam se perguntar: ‘Esgarçada a democracia, o que restará à nação?’
Não é precisa ser de esquerda para sopesar e refletir a gravidade do que se divisa do mirante da convulsão global: basta ser lúcido, contemporâneo e consciente das responsabilidades públicas com o futuro brasileiro.
Quantos desses há no Senado brasileiro?
O neoliberalismo revivificado aqui como diretriz ‘legitimadora’ do golpe , esfumou-se como alternativa de organização social e econômica na segunda principal economia da Europa.
Ao mesmo tempo e com igual intensidade, reafirmou o dano colateral da fragmentação política que se instala em sociedades submetidas a sua dieta, como mostra o caso do ‘ajuste espanhol’.
Receitas de supressão de direitos, empregos e gastos públicos, em nome de uma ‘contração expansiva’ a cargo do capital privada que nunca acontece, fazem água em todas as latitudes.
Será o Brasil a exceção?
A experiência do mundo lança alertas à direita e à esquerda.
O desacorçoo, desprovido de um contraponto político alternativo à rendição neoliberal, levou o ambiente partidário espanhol à um círculo de ferro de indiferenciação e descrédito.
A indignação difusa da Praça do Sol ainda não foi suficiente para rompe-lo.
Como um touro ferido, a democracia espanhola vagueia à procura de um projeto de futuro.
A incapacidade da política de dizer não ao mercado mantém a sociedade na UTI há oito anos, onde acumula 21% de desemprego (44% entre os jovens), um PIB quase 6% inferior ao de antes da crise e a mumificação progressiva do tecido social, sob a ação medicamentosa que ora se anuncia aqui como a salvação da lavoura.
A dinâmica global colide de maneira ostensiva com o que diz a manchete do jornal Valor desta 2ª feira, cujo maior pecado não é barrigada jornalística.
O que de pior a mídia inocula no discernimento brasileiro é a interdição ao debate ecumênico do desenvolvimento, em nome de uma certeza ortodoxa desprovida de laços com a realidade.
O vigamento ideológico da pauta neoliberal, a crença de que o Estado menor fará a sociedade melhor, não entregou o que prometeu.
Após quatro décadas de supremacia quase absoluta do seu credo, as grandes multidões cansaram de esperar pelos milagres do Messias Mercado.
A desilusão jorra pela sarjeta dos bairros pobres e remediados nos quatro cantos do mundo, que sempre estiveram ali e dali não mudaram para melhor.
Regurgita igualmente seu explosivo descrédito nos novos aglomerados decadentes, como o cinturão da ferrugem nos EUA.
Ferrugem industrial e mal-estar social.
Protótipo de cemitério fabril, em seu pórtico reluz o vaticínio a outros milhões de distritos operários do planeta, encarcerados na mesma lógica da liberdade para as coisas mortas e servidão para as vivas.
O paradoxo segue uma receita universal.
Desguarnecer a manufatura local, baratear importações dos clusters asiáticos, desencadear sucessivas contrapartidas de arrocho mitigatório e supressão de direitos, enxertar o vírus da pobreza e do desemprego nas famílias assalariadas, sepultar seu destino e o do país no definhamento tecnológico estrutural, consagrado como fatalidade diante da intocável liberdade para os capitais.
‘Nós que aqui estamos por vós esperamos’, dizem seis de cada sete norte-americanos, que ademais de não terem curso universitário, também não tem emprego nos dias que correm.
Formam eles a base do eleitorado que desistiu de esperar por uma solução ‘de mercado’.
Passaram a enxerga-la, perversamente, na mais arrematada personificação do seu algoz: o protecionismo regressivo, xenófobo, fascista, racista, preconceituoso e excludente.
Ou apenas, Donald Trump.
Seu sucesso reafirma, por caminhos contrapostos, a indissociável importância para a democracia da inserção produtiva sólida das famílias assalariadas, da sua identidade histórica e da correspondente organização de classe em torno de valores e direitos sociais compartilhados.
A mesma pobreza desgarrada que enxerga luz na escuridão vendida por Trump, optou pelo Brexit na Inglaterra e se rendeu ao desalento do ‘tanto faz isso ou aquilo’ na Espanha, neste domingo.
O cheiro de morte que empesteia o mundo desde a crise de 2008 se espessa na putrefação da pele política.
Vive-se a experiência de uma crise capitalista sistêmica que não gerou as forças de ruptura para a sua superação.
O resultado é a treva.
Essa que ‘ilumina’ as escolhas observadas nas últimas 72 horas e cujo poder contagioso equivale ao da peste negra –dos camisas negras— em outro divisor histórico.
A trinca aberta entre a base da sociedade e aqueles que deveriam vocalizar o conflito, mas, sobretudo, a negligência deliberada com a organização e o esclarecimento adequado dessa base, redundou no paradoxo infernal.
Não é um alerta difuso.
Cai como uma luva no Brasil.
Uma crise capitalista sistêmica que não gera forças de ruptura para supera-la encontra seu condottiere nas expressões mórbidas do próprio capitalismo.
O resultado é a virulência do que se busca despejar nos ombros das famílias assalariadas de todo o planeta.
E desde 12 de maio também nas do Brasil.
O país que em 1988 promulgou uma Constituição garantidora de direitos sociais e trabalhistas, a contrapelo da voragem neoliberal então avassaladora no planeta, engata mais uma viagem na contramão do tráfego histórico.
A diferença agora é que isso se faz em frontal contradição com os interesses da maioria da população.
E no lugar de uma repactuação constituinte, a bordo de um golpe de Estado.
A legitimidade para isso? As contas viciadas de uma plutocracia sonegadora para a qual a Carta Cidadã não cabe no orçamento da nação.
O pulo do gato do esbulho – aquilo que o diferencia de uma ditadura clássica-- é usar o combate seletivo à corrupção como biombo para a repressão política inerente à regressão social.
É disso que cuida o califado de Curitiba.
Não fosse por esse achado –para o qual contribuiu o mergulho petista no universo do caixa 2 eleitoral—seria preciso chamar de volta a OBAN para dobrar a resistência à usurpação.
Basta Moro, por enquanto.
A corrupção endógena a um sistema político fragmentado para dar ao dinheiro o comando do todo, não é o único fator de desmoralização da democracia.
A subordinação do Estado ao mercado avulta como a principal fonte da descrença do nosso tempo na política, nos partidos e no voto.
É isso que estão dizendo os ingleses cuspidos do paraíso dos livres mercados prometido por Thatcher em 1979, no qual nunca couberam.
A exclusão é um requisito à estabilidade da geringonça.
Será mesmo?
Quatro décadas de neoliberalismo esfarelaram a classe média dos EUA e desmontaram o estado do Bem-Estar europeu.
A renda real da outrora afluente classe média gringa encontra-se estagnada no nível de 1977, tendo o PIB crescido 50% no período.
Nunca a desigualdade foi tão extremada como agora na sociedade mais rica da terra.
A tese neoliberal de que a concentração em cima, vazaria a riqueza por gravidade para baixo, chocou uma falácia.
A fatia da renda nas mãos dos 20% mais ricos nos EUA chega hoje a 55% do total; evoluiu na razão inversa na base da pirâmide.
Não é menos regressivo o quadro europeu.
Pesquisas mostram que a diferença entre um rico e um pobre na sociedade europeia era de 1 para 12, em 1945; passou de 1 para 82, em 1980; é de 1 para 530 atualmente.
Em toda a UE, apenas os dilacerados mercados de trabalho de Portugal e Grécia pagam salários médios mais baixos que aqueles recebidos pelos trabalhadores ingleses, que votaram maciçamente no Brexit, na última sexta-feira.
São ingleses, também, os experimentos mais radicais de desregulação do mercado de trabalho em curso na UE.
A mão de obra ‘just in time’, como já observou Carta Maior neste espaço, é uma dessas modalidades ultraflex, acalentadas aqui pelos paladinos da terceirização total.
A nova tecnologia trabalhista reduz o empregado a um insumo requisitado da rua apenas quando a demanda imediata o exige.
Somente o tempo de uso estrito pela engrenagem produtiva será remunerado.
É melhor que a senzala.
Há 700 mil ‘insumos humanos’ desse tipo no capitalismo britânico, sendo a modalidade de ‘emprego’ que mais cresce na terra de Shakespeare, onde a decadência laboral e o fastígio da riqueza financeira pareciam conviver funcionalmente, até a abertura das urnas no dia 24.
O que esse conjunto de martírios e recusa nos diz é que um ciclo está se fechando na sociedade capitalista no século XXI.
A supremacia financeira insaciável perdeu a capacidade de girar a roda da história na direção das necessidades objetivas e psicológicas da humanidade.
Engasgado na própria saliva, o neoliberalismo regurgitar a autodissolução em manifestações de extremismo conservador.
O desenlace permanece em aberto em todo o mundo, a evidenciar uma mudança de época que não encontrou ainda um protagonista capaz de virar a página do calendário.
Não há escolha fácil nesse ambiente difícil, assoalhado de chão mole por todos os lados.
O terremoto deve sacudir o sonambulismo da esquerda mundial a partir de agora.
A demanda por recheios distintos da rendição aos mercados vai acabar produzindo a sua oferta.
Mas o tempo para a resposta democrática encurtou.
Uma heroica renovação da esquerda, ou a sua não menos trágica extinção em benefício de manifestações totalitárias emergentes, é o que pulsa no monitor da história.
O anacronismo temerário da agenda golpista no Brasil estreitou adicionalmente o tempo dessa escolha entre nós.
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