Eu sou a Sofia* e disseram-me que iria morrer com SIDA
09 Novembro 2016
Tinha 20 anos quando fui diagnosticada com VIH. Foi um diagnóstico complicado e tardio, já que não me enquadrava em nenhum dos denominados “grupos de risco”. Como nunca tinha consumido drogas por via injetada, feito uma transfusão de sangue, nem era um homem gay, no meu Hospital nunca fizeram um despiste para o VIH. Eu estava cada vez mais doente, mas ninguém sabia o que eu tinha.
Um dia caí num passeio em Lisboa e já não me consegui levantar. Não me lembro bem do que aconteceu, mas fui internada num hospital e uma médica de medicina interna descobriu o que eu tinha. Foi então que soube que tinha VIH, que este era uma doença mortal e que se vivia no máximo 10 anos após a infeção. Mas no meu caso já teriam passado 2 ou 3… A minha mãe passou a odiá-la. Ninguém tinha o direito de dizer à minha mãe que a sua filha de 20 anos iria morrer antes dela, ainda para mais em tão curto espaço de tempo. Mas eu agradeço-lhe a vida. Se não fosse o seu diagnóstico eu teria morrido há 22 anos. Esta médica, pragmática, conseguiu ver para além dos “grupos de risco”. Ela sabia que para se estar infectada bastava ter um “comportamento de risco” e que para isso bastava ter relações sexuais sem preservativo.
Naquele tempo os medicamentos eram muito maus, vomitava todos os dias, perdi 20kg, fiquei quase sem cabelo, sem sobrancelhas, sem pestanas, tinha feridas na pele, pesadelos e sentia-me muito cansada.
Paradoxalmente, comecei a apreciar mais a vida e a dar valor a todos os momentos de descanso do sofrimento físico provocado pelos efeitos secundários da medicação. Se não estava a sofrer, naquele minuto era feliz!
Naquele tempo viver com a infeção pelo VIH era igual a SIDA e esta era igual a morte – e num curto espaço de tempo. Os medicamentos iriam dar-me mais 3 anos de vida, mas eu não queria mais 3 anos assim. Eu sabia que ia morrer, mas queria aproveitar a vida. Então decidi que o melhor a fazer seria não tomar medicação! E assim conseguia fazer umas coisitas…
Já que ia morrer, resolvi contar a toda a gente que conhecia e sensibilizá-los. Queria sobretudo que outras mulheres como eu soubessem que os homens bonitos e aparentemente saudáveis com os quais se cruzavam poderiam estar infetados e – mesmo sem saberem – transmitir-lhes a infeção. O preservativo era a única hipótese!
Como sabia que ia morrer, toda a minha vida se alterou. Deixei de ter projetos para o futuro e passei a viver dia-a-dia.
Entretanto vieram medicamentos melhores. Mas eu estava tão fraca que já não tolerava nada, tudo me fazia intolerâncias e alergias: eu tinha entrado em estadio de SIDA! Houve uma altura em que, embora não quisesse morrer, também já não queria viver! Queria deixar de viver no sofrimento físico profundo em que vivia. Só queria dormir e não acordar.
Com a descoberta de novos medicamentos o VIH tinha deixado de ser mortal, tornando-se uma doença crónica. Só que a mim diziam que isso era só para os novos infetados e não para aqueles que já tinham SIDA, como eu.
Só que até eu melhorei com a nova medicação e com isso percebi que afinal não iria morrer tão cedo. Só que nesses anos não tinha descontado para uma reforma que nunca pensei vir a receber. Não continuei a estudar porque isso não iria valer a pena e agora encontrava-me sem trabalho e sem currículo. O que iria dizer a um possível empregador? Contar-lhe que tinha passado os últimos 20 anos a dormir numa redoma de vidro?
Fui sempre bem tratada pelos meus familiares, pelos meus amigos, conhecidos e vizinhos. Talvez isso tenha acontecido porque são maioritariamente de classe média, talvez por viver numa cidade grande, talvez porque tenha uma personalidade forte que não permite que me tratem mal…
Tive sempre namorados ao longo destes 20 anos e, à exceção daquele com quem estava quando me infetei, nenhum deles é seropositivo. Utilizámos sempre preservativo – alguns rebentaram, mas nunca infetei ninguém. Continuo amiga dos meus quatro ex namorados.
Hoje é tudo muito diferente: os medicamentos são ótimos, fáceis de tomar e com pouquíssimos efeitos secundários. Sabe-se hoje que a toma correta e consistente da medicação reduz a probabilidade de infetar outras pessoas em mais de 99%. Não é fácil ter uma infeção crónica, mas é melhor ser-se uma pessoa que vive com VIH do que doente com SIDA.
Nestes 22 anos, penso que a forma como sempre me vi e aceitei foi determinante para não ser, nem me sentir, discriminada. A minha atitude, inclusive perante os relacionamentos amorosos, foi diferente da maioria das pessoas infetadas, já que eu não resolvi deixar de ter sexo, nem escolho os meus parceiros por terem ou não VIH.
Hoje vendo em retrospectiva, e tendo conhecido outras pessoas seropositivas, percebo o quanto fui, e sou, uma privilegiada. Os meus amigos nunca se afastaram, nunca deixei de fazer novos amigos, os meus vizinhos nunca me discriminaram e os namorados nunca se detiveram, fosse por eu ter VIH ou um fungo no pé.
Pensei que não chegava aos 30. Já tenho 42. Afinal sou imortal e sou feliz!
*Sofia é um pseudónimo.
Este texto é da exclusiva responsabilidade da autora.
Fonte: gatportugal
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