sexta-feira, 7 de julho de 2017

Queijos bem partidos, queijos mal partidos

Péricles Capanema
Sacro Império
Ouvi um tanto de vezes: “Por aí, assim o queijo fica bem partido”. Situação encaminhada de forma satisfatória, com senso das proporções. Ainda: “Caso sem saída, queijo mal partido”. Equivale a situação resolvida sem levar em conta todos os fatores, cada um na devida proporção. O caso da NATO corre risco de virar queijo mal partido, com efeitos enormes — quem sabe apocalípticos — ao longo das décadas.

O presidente Donald Trump, em sua primeira viagem internacional, foi a Riad, Jerusalém e Roma, onde participou da reunião do G-7 e ainda visitou alguns países da Aliança Ocidental. Mais uma vez, o compromisso norte-americano com a defesa da Europa deixou a desejar. E a menor trinca nesse copo alarma.
Um destaque. Em discurso no novo quartel general da NATO, Trump evitou mencionar o artigo 5 do Tratado, que era o ponto esperado, até mesmo por sua equipe de segurança. Nele se afirma: “As Partes concordam em que um ataque armado contra uma ou várias delas na Europa ou na América do Norte será considerado um ataque a todas, e, consequentemente, concordam em que, se tal ataque armado se verificar, cada uma, no exercício do direito de legítima defesa, individual ou coletiva, [...] prestará assistência à Parte ou Partes assim atacadas, praticando sem demora, individualmente e de acordo com as restantes Partes, a ação que considerar necessária, inclusive o emprego da força armada, para restaurar e garantir a segurança na região do Atlântico Norte”.
A omissão, deixando pairar no ar a hipótese do descompromisso e distanciamento, enraizou desconfianças que já existiam desde a campanha eleitoral. Por exemplo, os Estados Unidos não mais defenderiam uma pequena nação agredida pela, nem precisaria dizer, Rússia?
Nessa mesma ocasião, a chanceler Ângela Merkel, ecoando preocupação comum entre europeus, declarou: “Os tempos em que podíamos contar inteiramente com o apoio de outros de alguma maneira já estão no passado. Tive esta experiência nos últimos dias [ela havia se encontrado com Donald Trump recentemente]. Tudo o que posso dizer é que nós, europeus, devemos tomar nosso destino em nossas próprias mãos, naturalmente com relações amigas com os Estados Unidos e Inglaterra. [...] até com a Rússia. Mas precisamos reconhecer que devemos lutar pelo nosso futuro como europeus”.
A principal queixa de Donald Trump é de que os europeus, em especial os alemães, não estão pagando o que seria razoável [fair share]. Enriqueceram, são os maiores interessados, mas relutam em meter a mão no bolso. E ainda de que a Alemanha tem um superávit comercial gigantesco com os Estados Unidos.
“Temos um gigantesco déficit comercial com a Alemanha e, além disso, os alemães pagam muito menos que deveriam para a NATO e em despesas militares, isso vai mudar”, tuitou o Presidente. Tem razão. Em 2016, o déficit foi de 67,8 bilhões de dólares. Os Estados Unidos utilizam 3,6% de seu PIB em gastos militares (75% do orçamento da NATO estão nas costas do tio Sam). A Alemanha gasta 1,2%. Em 2014, os então 28 membros da NATO prometeram empregar 2% do PIB em despesas militares. De momento, apenas cinco dos agora 29 membros cumprem tal meta.
Afirmei que Trump tem razão. Pergunto: tem inteira razão? Busco o ditado francês le ton fait la chanson — o tom muitas vezes é mais importante que o conteúdo da canção. Complemento da minha pergunta: está bem calibrado o tom da exigência? É hora própria? Tenho cá minhas dúvidas
Sacro Império
A NATO começou com o Tratado de Bruxelas, aliança contra a ameaça soviética, assinado em 17 de março de 1948 por Bélgica, Holanda, Luxemburgo, França e Reino Unido. Veio o bloqueio de Berlim e o golpe de Praga. Na atmosfera de Guerra Fria, os Estados Unidos se juntaram aos europeus; em 4 de abril de 1949 foi firmado o Tratado do Atlântico Norte [foto ao lado]. Além dos cinco países acima referidos, a nova aliança incluía Estados Unidos, Canadá, Portugal, Itália, Noruega, Dinamarca e Islândia. Em 1952 a Grécia e a Turquia, e em 1955 a Alemanha se uniram à NATO. O objetivo primeiro sempre foi ser uma barreira contra as agressões do comunismo soviético. Em resposta, a Rússia criou em 1955 o Pacto de Varsóvia.

Com a queda do Muro de Berlim, o fim do Pacto de Varsóvia e a reunificação alemã, o quadro se modificou rapidamente. Hoje a NATO abarca 29 países, além de três na fila: Bósnia-Herzegovina, Geórgia e Macedônia. Debaixo do guarda-chuva dos Estados Unidos eles se protegem das investidas do expansionismo russo, do jihadismo islâmico e dos ciberataques. E se o guarda-chuva se fechar? Desamparados, para onde rumarão?
Coroa do Sacro Império Romano Germânico
Coroa do Sacro Império Romano Germânico
Não custa lembrar, mutatis mutandis, que os Estados Unidos, como protetores da ordem, representam hoje o que no passado foram o Papa e o Imperador do Sacro Império: asseguravam a existência normal da Cristandade. A Europa é o que restou da Cristandade. Ali estão os países de raízes cristãs, seus herdeiros, ou — se quisermos — a civilização ocidental e cristã, expressões que evocam a origem medieval. Temos realidade mais fundamental para a perenidade da Fé e da civilização? A discussão de reivindicações justas em ambiente acerbo, enquadrada por horizontes limitados, facilmente criará caldo de cultura para um pulular de ressentimentos e dilacerações de toda sorte.
Na presente quadra histórica, o esfacelamento da NATO pode gerar efeitos parecidos com o fim do Império Romano em 476, também ele exercendo funções políticas com traços comuns às discutidas acima, tutela do espaço de convivência civilizada na Antiguidade. Abriu as portas para invasões e período de grande instabilidade. Esse queijo de agora precisa ser muito bem cortado.
Fonte: ABIM

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