sexta-feira, 29 de junho de 2018

Macroscópio – A antiguidade ainda é um posto? Sobre greves e outras coisas

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
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Há temas que são como certas pilhas: duram, duram, duram... E os conflitos com os sindicatos dos professores entram nessa categoria. Quase não há dia sem uma novidade qualquer, por regra acompanhado de uma ameaça de greve. Por isso, e mesmo durando o actual conflito já há várias semanas, decidi focar-me nele hoje não para dedicar muito tempo a expor os argumentos dos dois lados da barricada, mas para chamar a atenção para o que não está a ser discutido – e que é porventura o mais importante. 
 
Vou porém deixar essa recentragem da discussão um pouco lá mais para diante, começando por ajudar os leitores a situarem-se num novelo de argumentos que, aviso desde já, tem o seu quê de bizarro. Num explicador do Observador, Sete anos e um 'o' separam professores e Governo, Ana Kotowicz procura, através de 14 perguntas e 14 respostas guiar os leitores neste labirinto que tem no centro a frase em que o governo se compromete a discutir com os sindicatos “o modelo concreto da recomposição da carreira que permita recuperar o tempo de serviço” (documento na íntegra aqui). O argumento dos sindicatos, que Mário Nogueira expôs no Público em A justa luta dos professoresé que é “no artigo definido “o” que está a diferença entre o que ficou escrito e o que o Governo diz que lá está. Em novembro, era vontade dos governantes apenas referir “recuperar tempo de serviço”, mas não vingou a sua intenção. Foi introduzido o artigo definido para se dissiparem dúvidas. Demorou horas, esse aparente pormenor, mas é ele que defende os professores e nega a interpretação que conviria aos governantes.” Isto depois da secretária de Estado da Administração Educativa, Alexandra Leitão, ter argumentado no mesmo jornal, em Factos sobre a recuperação do tempo de serviço dos professores, que o tempo que deve valer para os descongelamentos é “um número assente em critérios de sustentabilidade e de compatibilização com os recursos disponíveis (tal como é imposto pelo artigo 19.º da Lei do Orçamento do Estado), mas também em critérios de equidade. Equidade e justiça tendo em conta a comparação entre carreiras da Administração Pública.”
 
Lendo estes textos e lendo o documento do acordo assinado em Novembro do ano passado surge uma perplexidade: se nele se fala em “modelo concreto da recomposição da carreira”, porque razão ninguém fala em... “recomposição da carreira”? Devo dizer que logo no início desta crise houve quem defendesse que era pela discussão das carreiras que se devia começar (defendi-o eu em Os professores não têm razão. O governo não tem razão nem moral, um pequeno vídeo do Observador, e defendeu-o João Miguel Tavares no Público E acabar de vez com as progressões automáticas?), mas a verdade é que o tema permanece tabu. 
 
Alexandre Homem Cristo foi por isso impiedoso não apenas com os sindicatos e o governo, mas também com os partidos numa crónica também no Observador, Os sindicalistas e os cobardes. Vale a pena recordar o que escreveu: “Ninguém arrisca o óbvio: é preciso reformar a avaliação dos professores e alterar a organização da sua carreira. E ninguém o diz porquê? Porque há medo dos sindicatos e das consequências eleitorais de ser alvo das suas lutas. O sucesso para este sindicalismo radicalizado é ter um país refém destes medos. Até quando? Hoje, o país precisava de partidos políticos reformistas que dissessem: sim, vamos propor um calendário realista para o descongelamento e a reposição possível das carreiras dos professores, mas em troca vamos garantir que o esforço desse investimento do Estado (e das famílias) se aplica num sistema mais justo, onde os melhores são recompensados e os alunos melhor servidos. Portugal precisa da coragem dos reformistas. E, no entanto, está cheio de cobardes.”
 
Foi face a este silêncio que não pude deixar de notar a coluna desta semana de Miguel Poiares Maduro no Jornal de Notícias, uma coluna com um título que, reconhe-se, não é cobarde: Descongelar carreiras congelando a ética e o mérito. Deixo-vos uma parte da sua argumentação: “Fundamental era ... debater a relação entre mérito e antiguidade na carreira dos professores e na nossa organização do trabalho em geral. Atualmente, favorecemos a antiguidade: é o que mais determina as promoções na carreira. A antiguidade recompensa aspetos importantes como a experiência e a estabilidade. Mas também tem problemas. Vários estudos demonstram, por exemplo, o impacto discriminatório em certos grupos sociais. É o caso das mulheres, quer porque têm usualmente carreiras mais curtas, quer porque um sistema que favorece a antiguidade tende a manter as diferenças salariais e o status quo discriminatório no mercado de trabalho. Para além disso, a ausência de incentivo ao mérito é um dos principais problemas da nossa sociedade que a preferência dada à antiguidade, em vez do mérito, agrava. Eis o debate que deveríamos estar a fazer e não estamos”.
 
Infelizmente, em Portugal, a antiguidade ainda é um posto – ou não fosse este o país que transformou mesmo em provérbio a expressão “a antiguidade é um posto”, numa referência às velhas normas de promoção nas Forças Armadas. Não posso por isso deixar de notar que mesmo entre os professores esse princípio começa a ser contestado, e não obrigatoriamente pelos depreciativamente classificados como “neoliberais”. Encontrei mesmo um texto, que é também um testemunho interessante, de José Pacheco, o fundador da famosa Escola da Ponte que o Observador já entrevistou, intitulado precisamente A antiguidade é um posto. É um texto de 2009, foi publicado no portal educare.pt, mas mantem toda a sua actualidade: “Ao longo de muitos anos, em nome do "direito ao emprego", os professores da Escola da Ponte foram obrigados a suportar quem a tentou destruir por dentro. Houve quem alegasse "antiguidade" para obter privilégios, colocando obstáculos ao desenvolvimento do projeto. Quem me conhece sabe que não morro de amores pelo neoliberalismo, mas teria de chegar a hora de defrontar vícios e desenvolver uma cultura de responsabilidade. Conquistámos o direito de escolher os professores e logo desabou sobre a escola a ira dos acomodados.” Mais: “É preciso que a escola pública atinja a maioridade, para que a antiguidade deixe de ser um posto.”
 

Mas uma vez que parece ser difícil atingir essa maioridade, os sindicatos são o que são e os partidos agem como agem, não deixa de ser especialmente importante a tomada de posição da CONFAP, a confederação que reúne as associações de pais, e que, Contra as sucessivas greves, sugeriu contratos de associação como solução: "A manter-se tal conjuntura ano após ano e não conseguindo os sucessivos governos inverter esta situação, então deve-se repensar a política educativa sobre os contratos de associação ou outras formas que permitam a todas as famílias poderem fazer a sua escolha pela escola". A razão de ser desta verdadeira revolta é que, nas escolas privadas que funcionam como escolas públicas e acolhem gratuitamente todos os estudantes, os professores não estão presos na mesma teia e as escolas também podem escolher os que melhor servirem o seu projecto educativo. 
 
Isto porque, escreveria Ricardo Arroja no jornal online Eco, Há greve porque a escola é pública. Conclusão que o leva a discutor o tema da liberdade de escolha da escola pelos pais: “Dizer-se que existe em Portugal liberdade de escolha na educação não passa de uma gigantesca fraude intelectual que serve a agenda corporativa (e frequentemente também ideológica) dos sindicatos dos professores, mas não o interesse da generalidade dos alunos. O comunicado da CONFAP vai ao cerne da questão: o problema da educação pública em Portugal está na prestação pública da educação, num sistema que está centralizado e fechado sobre si próprio. Neste quadro, há várias alternativas institucionais. Dos cheques ensino, aos contratos de associação, às IPSS, às “charter-schools” do tipo norte-americanas, ou outras formas que incluam financiamento público com prestação privada, não faltam soluções e não faltam países que as tenham adoptado com maior ou menor descentralização institucional, com maior ou menor financiamento público, com maior ou menor prestação privada, público-privada ou cooperativa.”
 
Esta é a outra discussão que devíamos estar a ter – aquela que nos libertaria da eternização das tensões que representaria, no quadro actual, ter aquele debate sobre carreiras e progressões por antiguidade, o tal por onde governo e partidos deviam ter começado, em vez de deixarem que fossem os sindicatos a estabelecer os termos do debate público. 
 
Entretanto, enquanto isso não acontece, podemos sempre regressar a velhos terçar de armas entre irremediáveis rivais como, neste domínio, são Miguel Sousa Tavares e o blogger Paulo Guinote. O primeiro disparou a primeira salva no Expresso da semana passada, escrevendo sobre o que designou de Paixões não correspondidas: “It takes two to tango”: de um lado, estavam os sucessivos governos, os pais, os alunos e os contribuintes; do outro lado, teriam de estar, forçosamente, os professores. Mas, que eu tenha dado por isso, nunca os professores estiveram do outro lado dessa paixão nacional.” O segundo respondeu-lhe no Público, com o texto E se Sousa Tavares lesse antes de escrever?, onde acusa o cronista de nem sequer ter lido um estudo que refere, o da OCDE sobre a crescente incapacidade da Educação funcionar como agente de mobilidade social.

 
Mas estas últimas sugestões são mais diversões, e mesmo estando nós a entrar em mais um fim-de-semana para leitura de diversão – uma tradição do Macroscópio às sextas-feiras – sinto-me obrigada a deixar-vos outra, e faço uma do Observador, sem grande pudor: se não leram ainda não deixem de ler não um, mas dois textos do Observador. Dois textos que, sendo sobre futebol, são também sobre ciência. Refiro-me aos trabalhos de Marta Leite Ferreira sobre como Quaresma conseguiu marcar o golo que marcou ao Irão – Há cinco séculos que a ciência estuda aquela trivela de Ricardo Quaresma. Mas só há dez anos a física a aplicou ao futebol– e as suas explicações para as diferenças físicas e mentais dos jogadores de futebol – Músculos como esponjas e um cérebro especial, mas massacrado. O corpo e a mente dos jogadores de futebol à luz da ciência. Eis uma passagem bem interessante deste último, que vos deixo como aperitivo, pois há mais, muito mais:
  • “Mais do que qualquer outro desporto, o futebol exige um brilho que redefina o córtex cerebral, porque o jogador de futebol está limitado a uma regra simples: fazer tudo sem mãos”. Ora, fazer tudo sem mãos é o mesmo que recuar milhões de anos na evolução que o sistema nervoso do Homem sofreu ao longo da sua presença na Terra: no cérebro da maior parte das pessoas, as mãos são os membros do corpo mais representadas (...). Isso não é o que se passa no cérebro de um futebolista, pelo menos não inteiramente: ao serem obrigados a não usarem as mãos na atividade que lhes preenche grande parte do quotidiano, o cérebro dos jogadores molda-se às exigências a que estão obrigados: “Como os pés dos jogadores são extremamente sensíveis e notavelmente poderosos, as regiões do cérebro a eles dedicadas expandem-se para permitir uma maior representação neural. Não é difícil imaginar que os cérebros de Ronaldo, Messi ou Neymar (...) possam ser muito diferentes da média humana, com uma representação expandida para os pés”, explica Jeffrey Holt. É por isto que “o córtex cerebral remodelado nas mentes dos melhores jogadores de futebol é uma prova da incrível plasticidade do cérebro humano e da sua capacidade de se adaptar e aprender com novas experiências” 
Uau, é caso para dizer. Que fascinante, é caso para pensar. Que interessante para ler e saber mais. E que bom pretexto para despedir até à próxima semana. 

 
 
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