Viriato Soromenho Marques 16 DE AGOSTO DE 201700:00 |
Thomas Jefferson, autor da Declaração de Independência e terceiro presidente dos EUA (1801-1809), não integrou a Convenção de Filadélfia de 1787, onde ficou lavrada a Constituição que ainda hoje é a Lei Fundamental dos EUA. Jefferson estava ao serviço do seu país, em Paris, como embaixador. No entanto, sempre com os olhos postos na América, cedo compreendeu a rara grandeza do documento constitucional e o valor excecional dos 55 homens que nele trabalharam. Numa carta a James Madison, um dos principais arquitetos da Constituição e quarto presidente da União, Jefferson designou os convencionalistas como "semideuses" (demigods), antecipando uma longa vida para a nova Constituição, ao contrário de George Washington, que embora tivesse presidido aos trabalhos de Filadélfia já ficaria contente se a nova Carta Fundamental sobrevivesse 20 anos.
Na verdade, é difícil imaginar o que seriam os EUA governados por Donald Trump sem esse documento - destinado a travar a tirania e com uma visão lucidamente desencantada da fraca inclinação moral do ser humano para o bem comum - forjado por um punhado de agricultores e advogados do final do século XVIII. A profunda doença da democracia norte-americana ajuda a explicar a vitória de Trump e o sucesso do livro tão ácido quanto polémico do professor de Georgetown Jason Brennan Contra a Democracia (ed. portuguesa, Gradiva, 2017). Mas mesmo num Congresso capturado pelos interesses das diferentes fações da plutocracia que manda no país, a existência de um poder judicial independente e a consciência dos deputados sobre o cuidado a ter em não confundir demasiado financiadores com eleitores têm permitido fazer da letra da lei um obstáculo eficaz ao impulso espontâneo de Trump para a tirania. Contudo, a Constituição tem um calcanhar de Aquiles que está a ser manifestado pela perigosa escalada belicista da crise coreana. Os agricultores e advogados do século XVIII não imaginaram que um dia os EUA se tornariam o maior império militar do planeta nem anteciparam um mundo em que várias potências teriam armas nucleares de destruição maciça, capazes de serem acionadas em poucos minutos (por exemplo: um míssil intercontinental demora 30 minutos a fazer a viagem mais longa entre a Rússia e o seu potencial alvo nos EUA, ou vice-versa), conferindo ao presidente dos EUA uma capacidade de decisão bélica, de vida ou de morte, sem necessidade de consultar o Congresso, reduzindo assim a competência de declarar a guerra do poder legislativo a mera arqueologia constitucional (artigo I, secção 8, cláusula 11).
A desastrada retórica de Trump na condução do conflito com a Coreia do Norte já fez inchar o ego do obscuro Kim Jong-un, que, subitamente, aparece na imprensa internacional revestido de um estatuto de paridade com o locatário da mesma casa onde governaram Lincoln e Roosevelt. A aliança entre falta de discernimento e armas nucleares é verdadeiramente temível, sobretudo quando essa incompetência está ao serviço de um ego narcisista e impulsivo. Se Trump escorregasse na casca de banana das provocações de Kim Jong-un, teríamos com alta probabilidade um conflito militar atómico, embora não creia que escalasse para uma guerra nuclear generalizada. Mas o número de mortos e de sofrimento evitável, a destruição e a contaminação ambiental de uma guerra nuclear na península coreana, estendida provavelmente ao Japão, iriam ferir negativa e indelevelmente a imagem dos EUA, sobretudo perante os seus aliados, deixando o mundo ainda mais vulnerável a todas as loucuras e pesadelos.
Fonte: DN
Nenhum comentário:
Postar um comentário