sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Macroscópio – O estranho país onde todos são sociais-democratas

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
(Aviso prévio: pode parecer, mas este Macroscópio não é sobre o Congresso do PSD nem sobre o actual momento do partido, apesar de os referir.)
 
Não foram poucas as vezes que, tal como relata em O PSD e a social-democracia Francisco Sarsfield Cabral, tive de explicar a jorna listas estrangeiros que, apesar de o partido se chamar social-democrata, isso “não queria dizer, em Portugal, que se tratasse de algo semelhante ao Partido Social Democrata alemão ou a vários partidos socialistas europeus”. Tal como ele também explicava a seguir que no nosso país o partido de centro-esquerda era o PS e o de centro-direita o PSD, apesar do seu estranho nome – mais estranho ainda se considerarmos que, no Parlamento Europeu, o PSD está integrado (tal como o CDS), no PPE, o bloco político dos cristãos-democratas e dos conservadores moderados. Em Portugal essa distinção era mais fácil de fazer porque, afinal de contas, o PS sempre se afirmou socialista e não social-democrata. Era...
 
Nos últimos dias assistimos a um fenómeno estranho: de repente todos querem ser, ou parecer, social-democratas. Já se sabe qual o moto de Rui Rio, que não apenas repete a sua intenção de regressar à “matriz social-democrata” como entendeu útil citar, no seu discurso de encerramento do congresso, um antigo dirigente do SPD alemão, Helmut Schmidt. Isto é, o líder do partido português que pertence à mesma família política da chanceler Merkel tem como referência uma figura do partido de Martin Schulz. Mas como se isso não fosse suficiente eis que, no Público, uma das figuras de referência da ala mais à esquerda do PS, Pedro Nuno Santos (aquele que em tempos ameaçou os banqueiros com o não pagamento de dívidas), escreveu um artigo com ambições de definição ideológica intitulado Os desafios da social-democracia.
 
Confusos? Não é caso para menos. E mais confusos ficarão se eu acrescentar que as manas Mortágua também já se juntaram a esta conversa. Antes de lá irmos regressemos contudo a Francisco Sarsfield Cabral, uma vez que o seu artigo fornece um bom enquadramento histórico das circunstâncias do nascimento do PSD e da sua evolução histórica. De facto, como ele refere, no início “O PSD tinha uma inspiração católica-social, bem como social-liberal e ainda uma linha tecnocrática-social. Sá Carneiro lutou sobretudo contra a tutela militar do sistema político e contra o partido comunista”. Depois veio nova liderança marcante, a de Cavaco Silva, que se distinguiu por ter procurado “travar a estatização da economia” até que chegámos à segunda liderança mais longa do PSD, a de Passos Coelho, que “Tentou reduzir a secular dependência da sociedade portuguesa em relação ao Estado, por isso lhe chamaram neoliberal”.
 
Quanto à social-democracia do PSD de Rui Rio ela vem reafirmada na sua moção ao Congresso, sendo significativa esta passagem: “Para o PSD o projeto social-democrata tem de construir-se sobre o legado do século XX e a inovação política, económica, social e cultural que o Mundo neste século XXI obriga a procurar. Falamos, antes de mais, de um novo contrato social que se afaste do discurso libertário anti Estado e simultaneamente das soluções estatizantes e igualitárias que dominam a esquerda (…) Um novo compromisso capaz de multiplicar os laços sociais entre a diferença, superando tensões e conflitos, e que nos permita repensar os valores básicos da democracia, da solidariedade e da igualdade na satisfação das necessidades sociais. Esse compromisso não poderá emergir da limitada regulação da “mão invisível” e remete para o Estado a responsabilidade de regular a satisfação dos interesses coletivos, a convergência dos propósitos comuns e a justa repartição dos bens públicos.”
 
Ora é precisamente esta passagem de que parte Ricardo Arroja, no jornal online Eco, para considerar que que “A social democracia de Rio” é antes “Um liberalismo de Estado”. Escreve o economista: “O texto é revelador. Nele se concebe o Estado como um fim em si mesmo. O Estado tem a responsabilidade. O Estado é justo! O texto fala-nos de “necessidades sociais”, de “interesses colectivos”, de “propósitos comuns”, de “bens públicos”. (...) Nesta visão do PSD, compete ao Estado regular o contrato social (?), satisfazer o interesse público (?) e substituir-se à mão invisível (do mercado, naturalmente). Vade retro libertário! O discurso, que também refuta [as] “soluções estatizantes e igualitárias”, tenta fazer a quadratura do círculo, mas não engana. O Estado regula e satisfaz, o Estado protege, o Estado orienta. O Estado, o Estado, o Estado. Respeitando naturalmente a posição política aqui subjacente, ela retrata uma visão que tem pouco de liberal. É, quanto muito, recuperando o título de um livro de David Justino, o coordenador da moção de Rio, uma espécie de “liberalismo numa sociedade iliberal”.
 
Mas há aqui ou não uma inversão de rumo? Se, como no fundo sustenta Sarsfield Cabral, o PSD nunca foi ideologicamente social-democrata, estamos a regressar a que matriz? O tema presta-se à discussão, pelo que é interessante recuperar um texto já com mais de dois anos de Rui Ramos no Observador onde este trata de explicar Porque é que o PSD já não é social-democrata? O seu ponto de partida é que “A social-democracia em Portugal tem uma definição simples: é a distribuição de dinheiro pelo Estado. Social-democrata é o governante que multiplica funcionários, aumenta pensões, acrescenta subsídios, e acumula contratos e parcerias.” O que significa que, fora dos anos de crise, o PSD foi social-democrata por esta definição. Porém, hoje tudo mudou pois “o PSD não é social-democrata porque há vinte e três anos, desde a crise de 1992-1993, que só governa em Portugal quando não há dinheiro. Ora, quando não há dinheiro, é preciso conter ou cortar despesa pública, mas também atender às recomendações internacionais para estimular investimentos e exportações, o que geralmente passa por aligeirar as limitações que o Estado português impõe aos empresários. É isto o “neo-liberalismo”, que em Portugal tem também uma definição muito simples: é o que os governos fazem quando não há dinheiro.”
 
Esta interpretação é mais histórica do que ideológica – de facto, quem no actual PSD leu, por exemplo, Eduard Bernstein, o pai-fundador da social-democracia? – e tem muito a ver com o país que somos. Um país no fundo muito semelhante ao que David Justino, o homem de Rio para os conteúdos programáticos, descreveu na sua obra académica sobre o fontismo, um país por isso que gosta mais que lhe falem de social-democracia do que de liberalismo.
 
É neste quadro que o texto de Pedro Nuno Santos surge como uma tentativa de definir a social-democracia do século XXI em torno de dois eixos: “na defesa do papel do Estado no desenvolvimento da economia através do investimento público e de políticas de inovação, e na redistribuição do rendimento através da provisão de serviços públicos e de prestações sociais” e “na protecção e no reconhecimento do valor do trabalho: do salário que paga, da dignidade pessoal que confere, e da integração social que permite”.
 
Joana e Mariana Mortágua acham pouco. Para a primeira, no jornal i, em À espera de Godot?, “A social-democracia, rendida política e ideologicamente à economia de mercado, não apresenta alternativa ao modelo conservador da austeridade”. Isto porque “A fidelidade de alguns protagonistas ao modelo tradicional de redistribuição da riqueza para corrigir as desigualdades sociais esbarra na desregulamentação económica e financeira que eles próprios promoveram”. Já para a mais mediática Mariana, no Público, em O desafio de Pedro Nuno Santos ao PS, enumera tudo o que considera impossível fazer no quadro da integração europeia de Portugal, concluindo que as ideias do dirigente socialista caem pela base pois “uma agenda transformadora para Portugal não é compatível com a atual política de gestão da dívida pública e contraria as regras neoliberalizantes da União Europeia. É por isso que, para além de concretização, esta agenda precisa de ousadia.”
 
Estes textos suscitaram duas reacções interessantes, mesmo que de orientação bem diversa. Ainda no Público, o eurodeputado do PS Francisco Assis, em Social-democracia à portuguesa, considerou algo surpreendentes estes textos, assim como o discurso de Rui Rio: “Numa altura em que a esquerda democrática atravessa uma grave crise no plano europeu, estas manifestações de afeição lusitana pela social-democracia não deixam de ser curiosas.” Passando depois ao ataque, defende que Pedro Nuno Santos “acerta na doutrina, mas equivoca-se no plano político e estratégico”. Isto porque a troca de correspondência com as manas Mortágua “evidencia-se com toda a clareza o carácter meramente conjuntural e precário da designada “geringonça”. Isto porque, “No fundo, o Bloco de Esquerda trata o PS com o mesmo desprezo moral com que a extrema-esquerda tratou ao longo de todo o século XX a esquerda de orientação liberal e democrática.”

 
Já Paulo Tunhas, no Observador, viu mais uma vez nos textos de Pedro Nuno Santos e Mariana Mortágua A esquerda contra a liberdade. Vale a pena conhecer a linha argumentativa do autor, mas a sua conclusão é expressa sem meias palavras, pois defende que naqueles textos há uma “rigidez quase alucinatória das oposições. Que entre o “privado” e o “público” possa haver diálogo e partilha é, neste sistema de pensamento, uma impossibilidade lógica. Daí resulta a muito curiosa e exclusiva concepção da liberdade que aparentemente Pedro Nuno Santos e Mariana Mortágua partilham. A liberdade é o Estado e mais nada. A “libertação da carga” que a direita atribuiu à palavra, o resgate linguístico operado pela gramática política e moral da esquerda, conduz directamente ao vazio de sentido. A “liberdade para todos” resulta na liberdade para ninguém. Qualquer sopro fora do Estado é “ofensiva liberal” que urge erradicar.”
 
A concluir, e para sair da estreiteza dos nossos horizontes – e da nossa “unanimidade” social-democrata – sugiro a leitura de What happened to Europe’s left?, um texto de Jan Rovny publicado no site da London School of Economics. Nele se recorda como 2017 foi um ‘annus horribilis’ para a esquerda europeia, que foi afastada do poder em França, na Áustria e na República Checa, devendo agora suceder-lhe o mesmo em Itália. Algo que não o surpreendeu e que constitui o ponto de partida do artigo: “The weakening of the political left has been long in the making. It has been largely caused by deep structural and technological change that has altered the face of European societies, changed the economic patterns of the continent, and given a renewed vigour to politics of identity. In this process, traditional left-wing parties have lost not only the grasp of their main political narrative, they have lost much of their traditional electorates. These electorates did not so much ‘switch’ away from the left, they have rather disappeared as a comprehensible social group.”
 
Houve um tempo em que era uma isolada aldeia gaulesa que resistia aos romanos, agora parece que é um pequeno país no extremo da Europa que foge aos movimentos de fundo que atravessam todo o continente. Será? E será isso positivo? Deixo-lhes esta reflexão para o fim-de-semana, com desejos de bom descanso e boas leituras. 

 
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