Um axioma, repetido ad nauseum, estipula categoricamente: "o Jornalista não deve ser objecto da Notícia". Aceitar acriticamente tal postulado envolve riscos, mormente: afastar o "foco" dos protagonistas, colocando-os a salvo de qualquer escrutínio
Na aparência de tocante e humilde inocência, tal axioma é a expressão sublimada da “monumental” hipocrisia que impera, neste sector como em tantos outros. Na penumbra desta “verdade” acoitam-se a condescendência arrogante, o corporativismo de classe como forma de auto-protecção, a cumplicidade na preservação do “estatuto social” que garante o, tão discreto quanto omnipresente, usufruto de pequenas “regalias” e privilégios vários, materiais ou simplesmente relacionais, isto é, de poder.
Um pacto de silêncio, não formalizado mas implícito, vigora na classe. Uma hierarquia, não regulada mas empiricamente aceite por todos, determina as relações de poder entre jornalistas de diferentes áreas e suportes de comunicação. No topo da “cadeia alimentar” estão os pivôs dos jornais televisivos seguidos de perto pelos seus camaradas que “aparecem” nos ecrãs. A rádio perdeu o “charme” e o carisma de antanho mas é uma boa montra para aceder à televisão.
Na imprensa escrita a hierarquia é determinada pelas editorias com as de Internacional, Política e Economia em primeiro plano devido ao tipo de contactos e relações que proporcionam; a Cultura, agora sobretudo entretenimento, mantém alguma respeitabilidade derivada do objecto; a Sociedade – Educação, Saúde, Justiça, etc. – é tratada ou por jornalistas muito aplicados e conhecedores do seu métier ou por estagiários entrados ontem para despedir amanhã. O Desporto – leia-se Futebol – é uma coisa algures entre o nítido nulo das perguntas repetidas e idiotas nas conferências de imprensa e os “doutos” pareceres dos veteranos da área, com uma enorme vantagem sobre as áreas mais “nobres”: traz mais público e audiências; A Ciência e a Tecnologia, durante muito tempo parentes pobres tratados na categoria de curiosidades, estão a subir, finalmente, na cadeia alimentar. O “social” cor-de-rosa, desprezado por todos – que fingem o contrário graças às audiências que, tristemente, daí advêm.
Outras “áreas”, associadas aos “estilos de vida”, como automóveis, electrónica de consumo, moda, decoração, beleza, “saúde”, viagens, gastronomia, imobiliário, e podia continuar indefinidamente, dirigem-se a públicos-alvo específicos, finitos, nichos de mercado, umas vezes maiores outras mais pequenos, que permitem estabelecer um nexo directo entre as empresas que operam no mercado em causa e os “consumidores” interessados na informação que estas pretendem comunicar. É como pescar num aquário: é pouco desportivo mas não tem como falhar.
Qualquer que seja a posição relativa na “cadeia alimentar” há um aspecto comum a todos os Jornalistas. Todos dependem da sua carteira de contactos e, a maioria – nos tempos que correm – acredita que tem de “seduzir” aqueles que ocupam os cargos que proporcionam os convites para as “viagens”, para os almoços em restaurantes de luxo, para os gadgets com que impressionam os amigos, ou, por vezes, com um “exclusivo” (cacha).
Do outro lado estão, amiúde, ex-jornalistas ou jornalistas com a Carteira Profissional suspensa, camaradas, tipos “porreiros” que convém manter devidamente “lubrificados” não vá dar-se o caso de escolherem um concorrente para o “slot” da viagem ou para darem a “entrevista” exclusiva que tanto gostariam de ter.
Isto é, há muito que a “agenda” dos Jornalistas e dos OCSs não é feita pelos próprios, sendo antes “cozinhada” nos gabinetes de imprensa e nas agências de comunicação das empresas, dos ministérios, dos corredores do poder em geral. As redacções estão reféns desta relação inquinada.
Factores de distorção da concorrência
Fortemente dependentes da economia e dos seus avanços e recuos, os mercados da Publicidade e dos Patrocínios são significativamente distorcidos pelos inúmeros elementos espúrios presentes nesta “arena”. A saber:
Centrais de Compras
As Centrais de Compras (de espaço/tempo de publicidade) surgiram como meio de permitir às agências de publicidade “forçar” os meios de comunicação a baixar os preços, comprimir as margens e reduzir a independência dos meios. Há vários equívocos que lhes estão associados de que destaco dois:
1. o embuste do custo por contacto. Não raro os brokers colocam o cliente final perante o seguinte raciocínio: um anúncio televisivo à hora da novela custa, suponhamos, 10 mil euros, alcançando uma audiência de 1 milhão de espectadores. A operação é fácil de efectuar: basta dividir 10 mil euros por um milhão de espectadores para apurar quanto custou cada “visita”. No nosso exemplo seria de 0,01 cêntimos. Um valor realmente baixo de “custo por contacto”;
Mas… e se o anúncio em causa for de um produto topo de gama, dispendioso portanto? Apesar de haver um milhão de espectadores quantos destes são, realmente, potenciais compradores desse produto? Se forem apenas 10 mil o custo por contacto sobe para um euro. Numa publicação especializada o mesmo anúncio custará, digamos, mil euros, chegará a 10 mil pessoas apenas, mas em que todas são, de facto, compradoras potenciais do produto. Isto é, o custo por contacto será de o,1 €. Melhor negócio, não?
2. o afunilamento das compras nos grandes grupos. Por mais “certeiros” que sejam os órgãos de informação especializados não interessam às Centrais de Compras pela simples razão de que estas não estão interessadas nos resultados das campanhas dos clientes finais, sabem que dificilmente estes poderão ou saberão identificar a proveniência das suas vendas e, em consequência, a qualidade relativa dos investimentos realizados em cada OCS;
Todavia há uma coisa que as Centrais de Compras sabem muito bem: o “rappel” anual estabelecido com os grupos de comunicação, cuja percentagem aumenta em função dos investimentos dos clientes finais para eles encaminhados, em regra definidos em escalões que podem representar vários milhões de euros de diferença no final do ano.
Centrais de tráfico de influências
O nacional-porreirismo, o amiguismo, as obediências secretas (como a Maçonaria, a Opus Dei e outras), a promiscuidade com os partidos do Poder, são outros tantos factores de distorção do mercado, permitindo o êxito de incompetentes e condenando ao fracasso projectos interessantes e bem orientados.
O determinismo da “dimensão do mercado”
O mercado nacional, os diferentes mercados, não representam volumes de compras (procura) interessantes excepto no topo de gama. O fosso entre ricos e pobres tem vindo a aumentar e o anterior governo contribuiu muito para o empobrecimento da classe média e para o surgimento em larga escala de novos pobres – da pobreza envergonhada.
As grandes corporações, nacionais ou multinacionais, e de um modo geral os protagonistas com poder, dinheiro e influência, esmeraram-se em pesquisar, e encontrar, “o elo mais fraco” no processo de divulgação dos seus produtos de modo a mexer no mercado. Nessa demanda encontraram a forma ideal de enfraquecer os meios e os empresários de comunicação – grandes ou pequenos. Encontrado o elo mais fraco, os jornalistas, e recorrendo às agências de comunicação para encurtar o orçamento anteriormente atribuído à publicidade, lograram “matar dois coelhos de uma cajadada”. A saber: colocar as empresas de media em” estado de sítio”, através da redução dos investimentos publicitários, e manter uma visibilidade de “marca” e de produto através das agências de comunicação, da falta de recursos financeiros dos próprios editores e da vontade de ascensão social dos próprios jornalistas.
Há Indústrias onde este marketing virou ciência. A Renault lançou um porta-bagagens no Egipto. Chamou-lhe Chamade mas na verdade era apenas um porta-bagagens. Teve honras de 16 páginas nas principais revistas do sector em todo o mundo. Cingindo-me ao que conheço de perto, da Grande Muralha da China a um passeio de trenó sobre o Círculo Polar Ártico, o que menos falta nesta indústria é imaginação. A estes eventos comparecem, a convite do fabricante organizador, Jornalistas de todo o mundo. Nas suas editoras não há dinheiro para lhes pagar a cobertura do evento. Pode haver algum ou alguns meios que viagem a expensas próprias. Desconheço se assim for.
É mais barato pagar a agências de comunicação para “sensibilizar” jornalistas que pagar publicidade. Os Jornalistas aceitam, os Editores, sem meios para financiar as viagens de outro modo, também. Esta estratégia estendeu-se a todas as indústrias com mais ou menos charme e poder de influência.
Na política, na economia, na justiça, os elementos perturbadores da verdade jornalística são, desde logo a complexidade das relações com as fontes, e, logo a seguir, as viagens, os hotéis de 5 estrelas e os restaurantes de luxo a que não poderiam chegar com recursos próprios. E, claro, a “pena suspensa”: se não escreves o que eu quero nunca mais és convidado.
Há exemplos que configuram situações de verdadeira corrupção: voltando à indústria automóvel, onde existe um “parque” de imprensa com carros que circulam entre “meios” para “testes”, pode acontecer que um jornalista interessado em adquirir um determinado modelo de certa marca veja o carro em causa ser adicionado ao “parque” de imprensa, ser-lhe emprestado com zero Kms para os tais “testes” e, terminados estes, devolvido ao referido “parque”, ficar retido até lhe ser vendido como “usado”, uns milhares de euros abaixo do seu preço de mercado e sem os impostos correspondentes.
Já na Política, na Economia e na Justiça muitos jornalistas desempenham com brio o papel que lhes é atribuído de “pés-de-microfone” ou, a pretexto das supra referidas promessas de “cachas”, de veículo de transmissão de algo que convém à sua “fonte” pôr a circular. Não raro “invenções” absolutas e absurdas destinadas a produzir um determinado resultado.
Entre o interesse dos proprietários dos OCS, na publicidade, e os dos próprios jornalistas, nos benefícios, privilégios e isenções, as grandes empresas, os políticos e os spin doctors têm larga margem de manobra. Claro que isto não abrange toda a classe, nem todos os OCS, mas vai aumentando à medida que os jornalistas seniores vão sendo excluídos das redacções para darem lugar a estagiários, gratuitos, fungíveis, e desconhecedores dos seus direitos e prerrogativas, como dos seus deveres deontológicos.
A tudo isto, a Comissão da Carteira, a ERC e o próprio Sindicato dos Jornalistas dizem… nada!
Voltarei, ainda e sempre a este assunto!
*Jornal Tornado
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