“Camarada Presidente,
São estes os factos que me levam a escrever-lhe mais uma vez, dada a impossibilidade de nos encontrarmos, no contexto actual, para reflectirmos sobre o momento político e económico do país. Prefiro usar a palavra «momento» ao invés da palavra «crise». V. Excia. é um mestre em gestão de crises, e poderá tranquilizar-me sobre quão passageiro é este momento, assegurando-me que o seu poder se manterá intacto. Respeito-o por isso.
Escrevo-lhe apenas para consultar o seu bom senso e opinião relativamente à estabilidade político-militar e económico-social que, decerto, os generais Zé Maria (chefe do Serviço de Inteligência e Segurança Militar – SISM), Kopelipa (chefe da Casa de Segurança do presidente da República) e Eduardo Octávio (chefe do Serviço de Inteligência e Segurança de Estado – SINSE) não lhe transmitem com clareza.
Pela primeira vez, notam-se, ao nível das FAA, desde os soldados aos generais, conversas em surdina e mais ou menos abertas acerca da fadiga colectiva que se vai instalando devido à sua longevidade no poder e ao modo como tem exercido ultimamente o seu papel de comandante-em-chefe. Como V. Excia. sabe, o salário mensal de um soldado é insuficiente para adquirir 20 hambúrgueres dos mais baratos no KFC, a cadeia alimentar de comida rápida que supostamente vende mais barato em Luanda.
Um pouco por todo o país, há muitos soldados que não têm botas ou uniformes, isto para não falar das condições sub-humanas em que são alojados e alimentados. Essa realidade contrasta com a riqueza ostensiva de muitos generais, alguns dos quais se tornaram bilionários ainda no activo e como fruto dos cargos que têm ocupado e dos esquemas daí derivantes. V. Excia. considera esse fosso normal, uma vez que tem sido o principal impulsionador da acumulação primitiva do capital, que empobrece cada vez mais os cidadãos para enriquecer cada vez mais os dirigentes.
O que se verifica hoje é o distanciamento perigoso entre comandantes e soldados. Hoje, a classe de generais, excepção à regra, assume-se e é mais bem identificada como sendo um grupo empresarial. A corrupção fragmentou o exército entre os que ficam com tudo e os que nada têm. Como comandante-em-chefe, quando foi a última vez que visitou uma unidade militar e conversou directamente com soldados para se inteirar dos seus problemas? Alguém se lembra? Eu lembro-me que na sua mensagem sobre o Estado da Nação, no ano passado, o comandante-em-chefe praticamente disse que as Forças Armadas e a Polícia Nacional deviam produzir os seus uniformes e as suas botas. Não explicou como, todavia.
Tem ouvido falar de alguma generosidade dos ricos do seu regime para com os mais desfavorecidos?
Veja o caso da sua própria filha Isabel dos Santos, a cidadã mais rica de Angola. Ela é presidente da Cruz Vermelha de Angola. Alguém já viu uma fotografia dela junto dos pobres, dos enfermos angolanos? Só a vemos bem acompanhada por celebridades internacionais. A sua filha Tchizé, deputada do MPLA, parece ter mais consciência social. Pena que não tenha mais calma e visão, assim como o apoio de V. Excia., enquanto pai, para fazer melhor no domínio público.
Como será possível manter a paz e a estabilidade política, que são os seus maiores trunfos de legitimidade, quando aqueles que deram a sua vida, sacrificaram a sua juventude e o seu futuro para proteger o poder de V. Excia. e defender a nação são hoje os principais perdedores da paz? Não são os soldados, justamente, os excluídos, o exército de ignorados? Excia., a questão fundamental que se coloca neste caso é o pão. Esqueçamos os hambúrgueres do KFC. O preço do pão já é proibitivo para muitas famílias, particularmente as dos soldados.
É compreensível a ideia enraizada da maioria dos dirigentes e militantes do MPLA segundo a qual o silenciamento dos críticos e o incremento da repressão e da propaganda podem servir de substituto adequado para o pão que falta ao povo. O MPLA sempre ganhou com essa estratégia. Porque perderia agora?
Para respondermos a esta questão, temos de observar primeiro a estrutura que sustenta o poder do MPLA. O poder, e por consequência, a coesão do MPLA assentam em quatro pilares: na sua pessoa, que comporta a sua autoridade e imagem; no poder da violência; na corrupção; na propaganda.
Sobre a sua pessoa e imagem, já há muito pouco para dizer que lhe seja favorável. Falemos então da sua autoridade. Para que esta seja exercida efectivamente, é necessário que o povo a reconheça como legítima e a aceite. Ora, a sua autoridade está a desmoronar-se, porque já não é exercida com base no reconhecimento dos cidadãos, uma vez que não está ao serviço do bem comum. É apenas força bruta.
Quanto ao poder da violência, estamos a falar especificamente das Forças Armadas Angolanas, dos soldados que agora lutam para comprar pão, e da Polícia Nacional, cujos agentes sobrevivem melhor porque diariamente extorquem dinheiro dos cidadãos por tudo e por nada. O que funciona a favor do regime não são as armas, mas sim a capacidade de difusão do medo, a aceitação da submissão por parte do povo. Porquê? Porque os soldados são, regra geral, filhos do mesmo povo a quem V. Excia. e o MPLA viraram costas. O povo está a despertar com a fome, o MPLA estagnou e o senhor foi ultrapassado pela realidade.
O que se verifica agora é o reverso do medo. O poder é uma ilusão. Entre os generais, começa a haver o receio, medo mesmo, de que a situação venha a complicar-se e eles não sejam capazes sequer de proteger os seus bens pessoais, caso nada seja feito para reverter a actual situação económica e garantir que os soldados ao menos tenham pão para a boca. É uma questão de sobrevivência.
Por sua vez, a corrupção, que lhe garantiu extraordinário poder e apoio na sociedade, agora ameaça derrubá-lo com a falta de dinheiro para manter o sistema clientelista que V. Excia. tão bem tem sabido gerir. Outrossim, V. Excia. há muito perdeu a capacidade de controlar a corrupção, e foi precisamente o saque desenfreado, levado a cabo pelos que são próximos de si e seus seguidores, na função pública e empresas públicas, que deixou os cofres do Estado vazios. Portanto, esse pilar está a ruir.
A propaganda merece menos palavras. Quem acredita nos seus raros discursos, dos dirigentes do MPLA, nos noticiários da TPA, da RNA e nos editoriais do Jornal de Angola? Isso explica os grupos de trabalho ao nível do MPLA e nos serviços de segurança para estudarem formas de controlar as mensagens nas redes sociais. Como a propaganda já não funciona, V. Excia. avança perigosamente para a repressão na internet. Esse pilar é uma luta perdida.
Há um outro problema fundamental com a narrativa política do MPLA. V. Excia. transformou-o num partido reaccionário. O MPLA hoje não defende nada de substancial, excepto o seu poder e o statu quo da sua elite predadora. Nas ruas, o povo descontente sussurra que os militantes mais engajados passaram apenas a emular o papel de cipaios, capatazes e de agentes coloniais que se manifestam contra o exercício pleno da cidadania. Apartaram-se da realidade ou protegem apenas os seus interesses pessoais e fingem não perceber a gravidade do momento actual. Por essa razão, muitos acreditam internamente que a saída de V. Excia. poderá levar ao desaparecimento gradual do MPLA.
Uma vez que os militantes do MPLA constituem a maioria dos cidadãos nacionais adultos, é fundamental iniciar a conversa sobre como poderão ser convertidos à realidade para que sejam agentes activos da mudança que todos nós ansiamos, incluindo V. Excia.
Aproveite, portanto, o congresso do seu partido para anunciar três medidas que muito contribuiriam para a sua segurança e a tranquilidade de todos os angolanos.
Reforme o seu partido, adequando-o ao pluralismo de ideias para que possa estar preparado a debater com a sociedade, sem armas na mão. Veja: o MPLA teme que, mesmo controlando 72% do Parlamento, o povo oiça o que os 28% dos deputados da oposição têm para dizer.
Estabeleça uma agenda nacional sobre os direitos humanos, a luta contra a corrupção, a boa governação e a justiça social, em concertação com toda a sociedade.
Prepare-se para entregar o poder depois das eleições de 2017.
Acredito que o sr. presidente preferirá lutar contra a corrente, até ao seu fim, ao invés de optar pela humildade e por uma saída harmoniosa e de irmandade com o povo sofredor.
Desta vez, não haverá mais reservas na luta pela liberdade de expressão e de imprensa, que são indispensáveis para a defesa do exercício pleno da cidadania, de defesa dos direitos humanos e do combate à corrupção. O povo precisa de luz, de pão, de saúde, de educação, de liderança e da defesa vigorosa dos seus interesses comuns.
Celebremos, em paz, este mês do seu aniversário. A luta será dura.”
De Maka Angola, em Folha 8
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