segunda-feira, 29 de maio de 2017

A estratégia da hipocrisia

Nelson R. Fragelli
Derrubamento de estátuas de Lenin, símbolo do naufrágio das esquerdas
Derrubamento de estátuas de Lenine em vários países, símbolo do naufrágio das esquerdas
No artigo A mudança que desorientou a esquerda, publicado no “Corriere della Sera” (9-12-14), Paolo Franchi resume o livro Retomemos vida, de Alfredo Reichlin, lançado naquele momento. Este título bem mostra que Reichlin, ex-dirigente do Partido Comunista Italiano, julgava seus ideais sem vida, se não extintos por perempção.
Nos anos do pós-guerra, os comunistas continuavam a tocar seu realejo: combate ao capital e às desigualdades, à pobreza e às injustiças sociais. Hipocrisia, pois naquele momento a URSS (União das Repúblicas Socialista Soviéticas) constituía o modelo de sociedade socialista. E nela o nivelamento era obtido pela miséria, dando os Gulags testemunho de perversas injustiças.
Os países não-comunistas notavam essa hipocrisia e recusavam o comunismo. A palavra “esquerda” já nos anos 70 tinha perdido seu sentido. Ninguém deseja a pobreza. O socialismo já não inovava nem tinha proposições atraentes. Os partidos socialistas procuravam sobretudo um meio termo enganoso entre o comunismo totalitário e a economia de livre mercado. O socialismo não foi capaz de apresentar uma “ideia de sociedade”. Em outras palavras, além do velho coletivismo alienante, nenhum outro conceito lhe ocorria.
Extinto o socialismo? O semanário francês “Valeurs Actuelles” (4-5-17) cita Manuel Vals, primeiro-ministro do governo socialista de François Hollande: A esquerda militante que conhecemos não existe mais. É o fim de um ciclo, é o fim de uma história. Vira-se uma página, será necessário escrever outra”. Vals é insuspeito para afirmar esta verdade, há décadas escondida.
Entrevistado por “Le Monde” (20-5-17), o historiador Marc Lazar, especialista das esquerdas, estende o pensamento de Manuel Vals. Segundo ele, a crise é perigosa, pois o Partido Socialista é incapaz de governar sem se dividir. Por que o PS se divide, apesar de ter conquistado o poder? Porque todo governante deve saber promover a produção e o bem-estar. Ora, o PS sabe que suas doutrinas levam invariavelmente à pobreza. Mas seus militantes querem aplicá-las, desejam maior intervenção estatal e a progressiva extinção da propriedade privada. Donde a cisão interna.
O governo socialista se põe assim a caminhar por vereda indecorosa, serpenteando entre o crescente controle estatal e a livre iniciativa. Assim, em 1946, ele renunciou à revolução marxista e lançou o falacioso slogan “socialismo humanista”, tentado lavar a face diante da inumana ditadura do proletariado. Mais tarde, livrando sua canoa furada do peso marxista, seus “teóricos” decidem se reconciliar com certa forma de liberalismo econômico e lançam outro slogan: a “terceira força”. O papel do Estado seria suavizado e se atribuiria maior responsabilidade ao indivíduo. Era uma linguagem de um embaraço pudico a fim de não escandalizar os radicais do Partido. Comovente hipocrisia. Mas não convenceu. Pois o PS e toda a esquerda europeia se encontram em situação gravíssima — conclui o Prof. Lazar. O pensamento do PS é fraco, e sua elaboração intelectual nula. Seus “teóricos” não se animam a teorizar. Com suas anteriores teorias gradativamente rejeitadas, hoje eles agonizam.
Derrubamento de estátuas de Lenin, símbolo do naufrágio das esquerdas
         “A lucidez de um vencido” é outro artigo de “Le Monde” (23-12-16). Versa sobre o historiador Enzo Traverso, nascido numa família italiana “católico-comunista” em 1957 e hoje professor nos Estados Unidos. Em seu livro Melancolia da esquerda [capa ao lado], Enzo analisa o fracasso das passadas proposições da esquerda e sua falta de pensamento. Foi com a queda do Muro de Berlim que ele se convenceu da enorme derrota do socialismo. O PCI (Partido Comunista Italiano) desapareceu de uma hora para outra e sua cultura foi evacuada sem nenhum balanço crítico. Desde então existe na Itália, como em toda parte, uma paralisia. E se vemos tentativas de retomar certas ações, tudo se passa num contexto de eclipse das utopias. Segundo Traverso, resta aos socialistas “tirar novas forças e nova lucidez de cada derrota”. Mais fácil seria procurar icebergs no Saara.

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