terça-feira, 27 de novembro de 2018

COMENTÁRIO DA SEMANA | O agendamento midiático e a saída de Cuba do programa Mais Médicos

Foto: Sistema Integrado Mais Médicos/Divulgação
Siliana Dalla Costa
Mestre em Jornalismo no PPGJor e pesquisadora objETHOS

Desde que foi eleito para o cargo de presidente da República, no dia 28 de outubro, Jair Bolsonaro (PSL) tem influenciado a agenda midiática. A cada nova declaração em seu perfil no Twitter – canal que tem usado para atacar seus opositores – jornalistas se apressam em cobrir o assunto, lançando sobre o público uma enxurrada de notícias fora de contexto, sem a profundidade necessária e, por vezes, sem relevância por tornar visível um discurso pífio. A falta de uma estratégia de cobertura por parte dos veículos de comunicação favorece o discurso político implementado por Bolsonaro desde a campanha e coloca a imprensa como inimiga do público.
É comum e natural que jornalistas estejam atentos às afirmações de um presidente recém eleito e que tem causado tanta repulsa, entretanto, ao cobrir desenfreadamente tudo o que diz permite que ele paute não só o debate, mas a própria mídia. Entre os perigos para este agendamento está a perda da confiança da mídia diante de seu público, mas principalmente o seu papel de vigilante, visto que a mesma informação divulgada por ele chega diretamente ao público via redes sociais (Facebook, Twitter ou Whatsapp) e, neste caso, o que chega é um discurso deturpado que não condiz com os fatos.
Na semana que passou, mais uma vez, Bolsonaro promoveu o agendamento midiático ao condicionar a participação de Cuba no programa Mais Médicos à aplicação de regras que desrespeitam os termos e condições já implementadas junto à Organização Pan-americana da Saúde desde 2013 e à afirmações consideradas falsas, como as apuradas pela agência Lupa de fact-checking.
Após as declarações, o Ministério da Saúde Pública de Cuba anunciou que está encerrando sua participação no programa Mais Médicos no Brasil. Em Nota, o Ministério de Cuba diz: “O presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, fazendo referências diretas, depreciativas e ameaçadoras à presença de nossos médicos, declarou e reiterou que modificará termos e condições do Programa Mais Médicos, com desrespeito à Organização Pan-Americana da Saúde e ao conveniado por ela com Cuba, ao pôr em dúvida a preparação de nossos médicos e condicionar sua permanência no programa a revalidação do título e como única via a contratação individual”. A considerar, Havana tem hoje a maior escola de medicina do mundo, a Escola Latino-Americana de Medicina, onde milhares de jovens médicos dos mais variados lugares do mundo, geralmente de origem pobre, se formam anualmente e voltam para trabalhar em suas comunidades, a maioria localizada em regiões periféricas, de difícil acesso ou de violência extrema. Só por este diferencial na formação dos profissionais é clara a evidência de que não é Cuba que precisa do Brasil, mas o contrário. Por outro lado, qual é o estudante de medicina de uma grande universidade brasileira que quer atuar em uma comunidade isolada, dentro da Floresta Amazônica, numa aldeia indígena ou no semiárido nordestino? Infelizmente nossas universidades formam profissionais que irão abrir suas clínicas particulares numa cidade estratégica para ganhar dinheiro.
A narrativa da cobertura
O agendamento promovido por Bolsonaro no caso do programa Mais Médicos levou o portal G1, por exemplo, a dizer em título que a “ditadura cubana demonstra grande irresponsabilidade ao tirar médicos do Brasil”, jogando para Cuba a responsabilidade do desfalque do Mais Médicos no país. Ao enaltecer esse discurso, o portal demonstra não ter estratégia de cobertura, nem mesmo compreender o quão controversa é a reportagem que produziu, já que no corpo do texto não há nenhuma informação ou documentos que possam justificar qualquer irresponsabilidade por parte de Cuba, a não ser as declarações do próprio presidente eleito.
Jornais como o Extra, por sua vez, adotaram o discurso da promessa de asilo aos profissionais cubanos que queiram ficar no Brasil, enquanto que outros veículos focaram na possibilidade das vagas deixadas pelos cubanos serem preenchidas por médicos brasileiros formados com bolsa do Fies ou, ainda, na ideia de as Forças Armadas assumirem os atendimentos.
Salvo algumas poucas reportagens, de modo geral, a narrativa da cobertura dos veículos de comunicação para o caso do Mais Médicos está baseada, exclusivamente, naquilo que Bolsonaro aponta como justificativas para a permanência de Cuba no programa, esquecendo-se que o fim do programa é um desejo antigo dele e que fez parte de seu plano de governo.
Quem agenda quem?
Desde que McCombs e Shaw (1972) apresentaram a hipótese da existência da função de agenda-setting dos média, ou seja, que o conteúdo da agenda mediática determina o conteúdo da agenda pública, o conceito de agenda-setting foi reduzido à ideia de que a “mídia pauta a sociedade”, ou seja, os consumidores de notícias tendem a considerar mais importantes os assuntos que são veiculados com maior destaque na cobertura jornalística. No entanto, há outras pautas. Assim como a mídia pauta a sociedade, a sociedade pauta a mídia, que pauta o governo e assim por diante.
Não por nada, Lippmann (1922) e Cohen (1963) preconizam a preponderância dos média na influência da agenda dos públicos. “A imprensa pode não ter muito sucesso na maior parte do tempo a dizer aos leitores o que pensar, mas é extraordinariamente bem sucedida a dizer-lhes sobre o que pensar” (COHEN, 1963, p. 13).


No caso da agenda pautada pelo presidente eleito (aqui representando governo), o questionamento que se faz não é quem agenda quem, mas os limites para este agendamento. Não se defende aqui a normalização de atos preconceituosos ou a disseminação de mentiras sem que a mídia cumpra seu papel de fiscalizadora do poder público, mas a precaução dos jornalistas em não entrar no jogo do conflito empunhado por Bolsonaro. É necessário manter a calma, organizar melhor o tempo, o espaço e o foco da cobertura de determinados assuntos, entregando ao público informações mais úteis que contrapunham o discurso e que busquem a verdade, afinal “a verdade é a arma do crescimento da esquerda”, conforme dito por Jair Bolsonaro em seu Twitter na tarde deste domingo. Armemo-nos, pois, com a verdade.
Fonte: objethos

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