Martinho Júnior, Luanda
1 - Angola e Moçambique constituem uma verdadeira encruzilhada na história contemporânea de África, se tivermos em conta a progressão do Movimento de Libertação no continente e o conjunto das alianças progressistas que isso envolveu durante praticamente toda a segunda metade do século XX e na sequência da vitória aliada na IIª Guerra Mundial.
Depois da Conferência de Berlim nos finais do século XIX, em que África foi dividida entre as potências coloniais ávidas de matérias-primas em função do desenvolvimento das forças produtivas inerentes à Revolução Industrial (que havia despontado alterando profundamente o panorama global), um desequilíbrio humano abrupto instalou-se num continente que se havia até então fechado em relação ao exterior, por que as potências coloniais finalmente tinham meios para se internar em toda a profundidade.
Os africanos que resistiram a essa devassa estavam longe de conseguir êxito nos seus propósitos e os europeus colonizadores, à medida que as máquinas substituíram o braço humano, chegaram ao miolo fértil do continente, à região matriz da água continental, situada nos Grandes Lagos e envolvendo as nascentes e bacias dos grandes rios: o Nilo, o Congo e o Zambeze.
Era o tempo duma Grã-Bretanha colonial, tornada ela própria império sob o génio elitista de Cecil John Rhodes, que começou por eliminar os obstáculos na África do Sul, onde os boers impediam a gestação da União Sul Africana e a progressão “do Cabo ao Cairo”!
O colonialismo impôs assim um processo dialético que havia sido impossível ter chegado à radicalização durante a época do tráfico negreiro transatlântico, quando África se sujeitava ao esvair do seu próprio tecido humano através dos poros costeiros, tráfico negreiro que servia a necessidade de mão-de-obra escrava nas Américas, antes das máquinas chegarem com a Revolução Industrial.
Se o capitalismo rampante, por via da sua Revolução Industrial, passou a dispensar a mão-de-obra escrava, não podia dispensar o acesso “imperioso” às matérias-primas e os dois continentes, América e África, passaram a ser um alvo preferencial perante a voracidade que chegava de fora e se impunha por via da opressão e da repressão colonial: se havia findado a escravatura, nem por isso os africanos sob o jugo colonial tinham acesso aos direitos humanos, à liberdade, à independência, à soberania, muito menos a processos democráticos que conduzissem ao desenvolvimento de suas enormes potencialidades!...
A dialética entre o opressor e o oprimido radicalizou-se assim ali onde o colonialismo se tornou renitente e ofereceu resistência de armas na mão.
Essa foi a primeira lição para o Movimento de Libertação em África (com seu radicalismo antagónico) e foi assim que na segunda metade do século XX surgiu paulatinamente o Movimento de Libertação moderno, distinto dos etno-nacionalismos (radicalismos não antagónicos), que de armas na mão respondia às mais renitentes resistências coloniais: a francesa na Argélia, a portuguesa na Guiné Bissau, em Angola, em Moçambique e nos pequenos arquipélagos de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe e por fim o regime do “apartheid” na África do Sul.
Conforme o Comandante Fidel, Cuba com toda a dignidade, solidariedade e internacionalismo, juntava-se aos africanos progressistas: “el pueblo cubano no hizo más que saldar una deuda con Africa y con la humanidad”… (Barbados, 1 de Agosto de 1998).
Esse processo de luta armada seguiu assim efectivamente e não por acaso, o sentido inverso do génio imperialista britânico que teve em Cecil John Rhodes a sua maior fonte de inspiração elitista: de Argel ao Cabo (da Boa Esperança).
2 - O Movimento de Libertação atraiu à sua luta armada os socialistas do após IIª Guerra Mundial e os revolucionários cubanos que na América haviam conseguido com êxito sacudir o jugo colonial e o do império!
Os cubanos são eles próprios também herdeiros das revoluções de escravos ocorridas sobretudo nas Caraíbas, que aliás foram antes um manancial humano a que recorreu a pirataria e os corsários nos mares, até ao fim do colonialismo espanhol, português e francês, bem como na transversalidade do colonialismo britânico e o início da expansão imperial dos Estados Unidos.
A luta contra o colonialismo tornou-se num processo dialético que se radicalizou, uma vez mais: do lado da opressão retrógrada situavam-se o colonialismo e o “apartheid” que compunham o processo elitista mais empedernido, renitente e resistente… e do lado do Movimento de Libertação moderno, a capacidade progressista antagónica que visava unir os africanos independentemente das suas etnias e credos religiosos, a fim de realizar o sonho secular dos direitos humanos que durante séculos se lhes haviam sido sonegados, outra lição dentro da lição maior.
Vencidos os franceses na Argélia em 1961, restavam as colónias portuguesas e a África do Sul dominada pelo “apartheid”, um regime que impunha a “bantustanização”, o colonialismo de que era parte intrínseca e as alianças discretas ou em aberto com o neocolonialismo que despontava a norte (Zaíre, Costa do Marfim, Senegal…).
As forças progressistas foram-se assim agrupando numa linha da frente informal que teve pontos sensíveis em Dar es Salam, no ocidente do Lago Tanganica (ainda que com a passagem efémera do Comandante Che Guevara pela região em socorro dos seguidores de Patrice Lumumba depois do seu assassínio) e em Brazzaville.
Enquanto isso, na Guiné Bissau o enfrentamento se intensificava por que a pequenez do território permitia uma outra concentração de poder armado ao PAIGC e seus aliados…
Foi a partir dessa linha da frente (outra lição a aprender) que o MPLA e a FRELIMO, conjuntamente com seus aliados que incluíam os que ofereciam seu território como rectaguarda (Tanzânia e República do Congo), se dispuseram a enfrentar o bastião das trevas a sul!
Esse enfrentamento tornou-se pela natureza da luta armada, um processo assimétrico, também por causa dos pontos fracos dos africanos: quer o Zaíre, quer a Zâmbia, com características distintas, eram vulneráveis ao neocolonialismo e estavam à mercê dos expedientes das inteligências retrógradas que serviam colonialismo e “apartheid”, que desse modo providenciavam o semear sobretudo de suas próprias sequelas etno-nacionalistas e não antagónicas!
3 - Em Angola e em Moçambique, vencido o colonialismo português, pasto de suas próprias contradições internas que foram motivo de luta também dos progressistas portugueses com o Partido Comunista Português no eixo do esforço, propiciou-se uma Linha da Frente que se haveria de tornar“oficial”, pois a sul estavam o teimoso “apartheid” e ainda os restos de colonialismo instalados no“Sudoeste Africano” (Namíbia) e na “Rodésia” (Zimbabwe)…
Uma vez mais o Movimento de Libertação instalado numa Linha da Frente que tinha em Angola e Moçambique dois pilares incontornáveis a leste e a oeste (Moçambique e Angola) dava corpo a um legítimo antagonismo (outra lição), que passou também a ser obstruído num quadro de alianças retrógradas, por etno-nacionalismos capazes do exercício de sequelas, que tiveram expoentes em duas entidades: Savimbi e Dlakhama.
O radical antagonismo acabou por ser determinante sob o ponto de vista dialético, pois permitiu aos progressistas vencer o “apartheid”, acabar com os “bantustões” que lhes eram servis, inibir as sequelas etno-nacionalistas e os estados agenciados pelo neocolonialismo (sobretudo o Zaíre) e conduzir à descolonização total a África Austral, levando até à formação da SADC, sucedânea da Linha da Frente.
Esse processo histórico contudo foi contemporâneo ao facto de África ter perdido no plano externo os seus aliados naturais mais decisivos: a URSS (que sofreria a implosão) e os países socialistas do leste europeu (que foram sendo paulatinamente absorvidos por uma União Europeia capitalista e ela própria cada vez mais permissiva à formação da hegemonia unipolar), sob os impactos do capitalismo neoliberal de tendência global que deitava mão aos processos produtivos duma nova Revolução Tecnológica, que se caracterizava também por aproveitar e moldar os ganhos advenientes da anterior Revolução Industrial.
Os bastiões da Linha da Frente que derrotaram colonialismo e “apartheid”, sobretudo Angola e Moçambique após a independência, com o capitalismo neoliberal vencedor da chamada Guerra Fria, ficaram alvo e à mercê das sequelas que foram pacientemente alimentadas pelos processos coloniais, do “apartheid” e neocoloniais, facto que, em relação a Angola se pode observar até no carácter dos acordos de Gbadolite, de Bicesse e de Lusaka.
A luta entre a tese progressista (Movimento de Libertação moderno) e a antítese retrógrada (restos de colonialismo e do “apartheid” conjugados com o neocolonialismo) foi indelevelmente transferida para um outro patamar permissivo às mais grosseiras ingerências e manipulações e foi assim que os conflitos atingiram em cheio a África Central (com os Grandes Lagos a sofrerem o estigma do holocausto ruandês e a expansão da crise para dentro da RDC) e a África Austral (onde o elitismo do“lobby” dos minerais se havia entrincheirado no cartel dos diamantes).
A cadeia de conflitos tornou-se uma cadeia de guerras entrelaçadas, no que para muitos terá sido a “Iª Guerra Mundial Africana”, que teve o petróleo, os diamantes e outras matérias-primas, como recursos no âmbito da nova confrontação antagónica que se generalizou.
Essa foi outra lição a aprender!
Em Angola esse conflito estendeu-se de 1992 a 2002, tendo Savimbi assumido a iniciativa da conduta do choque neoliberal (“somalização”), o que entre outros fenómenos desencadeou múltiplas e sucessivas contradições internas na UNITA, à medida que seus membros se foram apercebendo do jogo retrógrado de que África estava a ser de novo vítima, muitos deles sentindo-o na sua própria carne…
Uma vez mais o antagonismo foi eminentemente dialético, apesar das assimetrias e do processo de desgaste de Savimbi: dum lado (tese) a resistência progressista dos que haviam animado a substância do Movimento de Libertação na sua luta armada contra o colonialismo e o “apartheid”, face às sequelas retrógradas (antítese) que agora eram (e continuam ainda a ser em Moçambique) utilizadas como instrumentos de choque neoliberal…
A esse processo antagónico sucedeu-se uma síntese gerada a partir duma paz possível, que se procura animar num quadro de economia de mercado, de integração, de reconstrução, de reconciliação e de reinserção social (conforme o exemplo angolano), embora vulnerável à terapia neoliberal imposta pela hegemonia unipolar tutora da globalização resultante da nova Revolução Tecnológica (satélites, computadores, telemóveis, comunicação impactante e em tempo real…), quantas vezes por via de tentáculos “soft power” de natureza económica, financeira, tecnológica e de “know how” de estados vassalos europeus susceptíveis de serem agenciados como recurso para o corrente “jogo africano”(parafraseando Jaime Nogueira Pinto), sabendo que a economia africana continua a ser ainda uma economia periférica, vulnerável, manipulável e moldável aos termos dos impactos duma globalização neoliberal ao serviço da hegemonia unipolar (uma das últimas lições que nos devem fazer reflectir).
Na presente síntese Angola terá de acelerar a sua integração regional sobretudo no espaço SADC, terá de melhor qualificar as políticas e capacidades de paz internas e em direcção aos espaços do Golfo da Guiné e África Central (Grandes Lagos), terá de enveredar por um consequente e coerente quadro de luta constante contra o subdesenvolvimento crónico de que África tem sido vítima sob o ponto de vista antropológico e histórico, terá de banir os deslumbramentos por que alguns enveredaram, particularmente nos sectores estratégicos da educação e da saúde…
O MPLA pelo acumular das suas experiências dialécticas a que se submeteu enquanto Movimento de Libertação moderno, experiências tão antagónicas que por vezes eram uma questão de “Vitória ou Morte”, vive hoje o quadro da síntese possível que emergiu de décadas de incessantes lutas e possui um manancial de inteligência dialética inestimável a seu favor: pode aprender pela contradição, no âmbito da história que faz parte da sua própria essência!
A paz corrente é a resultante inteligente e contraditória sobretudo à guerra que motivou Savimbi enquanto instrumento do “choque neoliberal”, ou seja o MPLA aprendeu e muito com a contradição a Savimbi!
Todo o longo processo de aprendizagem com o Movimento de Libertação não foi, nem é propício a gente acomodada, pois há resgates que vêm de longe a realizar e isso deve incomodar todos, pelo que se devem acabar com os “deslumbramentos” a que levou a terapia neoliberal e os “deslumbrados”arredados de onde jamais deveriam ter estado!
Há alguns que se sentem acomodados, por que a terapia neoliberal além do mais dispõe de poderosas articulações persuasivas, nos termos duma acção psicológica atractiva à formação duma oligarquia nacional que a hegemonia unipolar sabe que poderá vir a ser, mais tarde ou mais cedo, agenciada (um dos segredos que faz parte das torrentes de seus negócios).
A emergência multipolar por seu turno, não é suficientemente crítica à formação dessa oligarquia, em especial se ela lhe for também suficientemente afim.
Numa síntese com estas características, que deve-se tornar num manancial de luta contra o subdesenvolvimento tendo em conta a paz que não se pode resumir a um simples cessar de tiros, a um desminar do território, ou à recolha de armas que andavam (ou ainda andam) nas mãos dos civis, definidos os parâmetros actuais duma democracia mista de representativa e participativa, em vias de se instalarem as instituições correspondentes, é o momento de se colocar à UNITA e ao CASA CE, particularmente àqueles que se distanciaram e se distanciam de Savimbi na sua perdição, se realmente aprenderam ou não a partir do processo dialético, quantas vezes contraditório, que tiveram enquanto antítese deliquescente face ao MPLA, por que desde 2002 se tem vindo a colocar a todos nós, olhos nos olhos, de mãos limpas, coração ardente e cabeça fria, que “o mais importante é resolver os problemas do povo”!
Foto: dois líderes dos processos de luta que galvanizaram a Linha da Frente em Angola e Moçambique: Agostinho Neto e Marcelino dos Santos.
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