quinta-feira, 8 de março de 2018

O Racionalismo Crítico e a Defesa da Racionalidade

“...o conflito entre o racionalismo e o irracionalismo tornou-se a mais importante questão intelectual e talvez moral, de nosso tempo. (Popper, 1945, vol.2, p.224)
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Prof. Luís A. Peluso*

Introdução

A simples evocação da expressão racionalismo crítico põe o problema de delinear os limites entre as posições racionalistas e irracionalistas. Aqui se pretende examinar a questão do confronto entre duas perspectivas epistemológicas, ou duas formas de entender o princípio fundamental que permite avaliar os limites do conhecimento humano. Trata-se da refrega entre racionalismo e irracionalismo. 
De um lado estão aqueles que defendem o princípio da racionalidade em sua forma compreensiva ou extremada, que poderia ser expresso na afirmação que ‘no mundo do conhecimento humano, somente se pode aceitar aquilo que pode ser defendido por meio de argumentos ou da experiência’. De outro lado estão os irracionalistas que sustentam o princípio da irracionalidade humana, isto é, que ‘no mundo do conhecimento humano devemos aceitar idéias ou teorias que sejam expressivas das emoções e paixões humanas’. 
Aqui se pretende argumentar em favor de duas posições. Primeiro, que o racionalismo extremado é logicamente insustentável. Pois, o princípio da racionalidade não é demonstrável de forma argumentativa ou empírica. Segundo, que o irracionalismo tem contra si objeções epistemológicas e morais. Pois, o princípio da irracionalidade não fundamenta uma epistemologia irracionalista; ademais, o irracionalismo é tolerante com a violência e com algumas outras imperfeições morais. 
Acompanhando as sugestões de Karl Popper, aqui se pretende apresentar algumas teses do racionalismo crítico, ou irracionalismo mitigado, que se constrói a partir do princípio que ‘no mundo do conhecimento adotamos a fé irracional na razão, adotamos igualmente uma série infinda de pressupostos irracionais e examinamos criticamente as suas conseqüências através de argumentos e experiências’.(Popper, 1945, p. 231)
O texto que segue está dividido em três partes. Na primeira pretende-se esclarecer alguns conceitos básicos e examinar a insustentabilidade do princípio da racionalidade em sua forma extremada ou compreensiva. 
Na segunda parte serão apresentadas as razões da alegação que o irracionalismo não oferece uma epistemologia irracionalista. Seguramente isto não é interpretado como uma dificuldade pelos irracionalistas que não vêem vantagem em teorias epistemológicas racionais. Entretanto, prevalece o fato que não se dá uma epistemologia irracionalista. Em que medida isso, de fato, se constitui em uma dificuldade para os sistemas especulativos, fica para ser resolvido. Será ainda argumentado que o irracionalismo não produz um sistema de objeções à violência, assim como, induz a posições que resultam na defesa de regras de conduta insustentáveis de um ponto de vista moral. 
Na terceira parte serão apresentados os fundamentos de uma epistemologia construída a partir do princípio do racionalismo crítico ou irracionalismo mitigado. O realismo de senso comum, ou a alegação que os fatos não tem seu fundamento em nossas mentes, o objetivismo, isto é, a afirmação que nossas teorias têm sua realidade independentemente de nós e o indeterminismo, ou seja, a teoria que podemos manipular alguns corpos físicos de acordo com nossas vontades, esses três ingredientes são necessários para compreender o funcionamento apropriado do método crítico.
Resultado de imagem para O Racionalismo Crítico e a Defesa da RacionalidadeO racionalismo crítico, ou irracionalismo mitigado propõe, ainda, a defesa da teoria que o conhecimento humano é o instrumento de que dispõe o ser humano para evitar as indesejadas conseqüências irrevogáveis e incontroláveis de nossas ações intencionais e que a adoção da técnica de propostas parciais na reforma social é uma conseqüência direta da aplicação de uma postura racional crítica na vida social. 
A título de conclusão se sugere que, a partir da perspectiva do racionalismo crítico, o racional e o razoável não se distinguem. Para um racionalista crítico uma teoria é racional quando resiste ao falseamento após ser submetida a uma série de testes severos no sentido de evidenciar sua falsidade. Uma posição intelectual é razoável quando expressa a teoria que contém maior conteúdo informativo e que teve a melhor performance frente às tentativas de refutação, num determinado momento do tempo. Nesse sentido, as teorias, ou posições intelectuais, não são racionais, ou razoáveis, de forma definitiva. 

I

Aqui pretende-se esclarecer alguns conceitos básicos e examinar a insustentabilidade do princípio da racionalidade em sua forma extremada ou compreensiva. De uma forma geral pode-se dizer que o desenvolvimento do pensamento no Ocidente tem sido caracterizado pela ocorrência de momentos onde se configura de forma expressiva o esforço da implementação daquilo que se poderia caracterizar como racionalismo, ou intelectualismo, ou seja, o movimento em favor da adoção do princípio da racionalidade na sua forma compreensiva ou extremada. O próprio surgimento da Filosofia estaria associado aos primórdios desse empenho do ser humano em desfazer-se de interpretações místicas, mitológicas e tribais. (Popper, 1945, p. 136 e Popper, 1963, pp. 136-164) 
Entretanto, a própria investigação filosófica tornou-se devedora da postura irracionalista na medida em que alguns sistemas filosóficos adotaram o princípio da irracionalidade e algumas de suas implicações. Na Filosofia Contemporânea, particularmente em pensadores como Bergson, Hegel, Freud, Nietzsche, Wittgenstein instituiu-se um irracionalismo que transforma seus defensores em verdadeiros oráculos preconizadores de uma sabedoria que considera dispensável toda forma de crítica.
O fato é que, para aqueles que se deixam levar por essa atual maré de filosofia irracionalista é lamentável que existam os racionalistas, os quais são genericamente descritos como seres inferiores preocupados tão somente com o lado mecânico das coisas, pobres de espírito que não possuem sensibilidade para os problemas profundos que envolvem o destino humano e defensores do formalismo, uma vez que não possuem capacidade para a produção metafísica que envolve a compreensão dos fundamentos da existência humana. (Popper, 1945, p.229) Disso pode-se depreender que o número de irracionalistas é bem maior do que aquele que pode ser contado numa primeira aproximação. 
O embate contemporâneo entre racionalistas e irracionalistas tem na modernidade o caráter de confronto entre correntes filosóficas que se separam de forma radical. Não se trata apenas do confronto entre os defensores do projeto da modernidade, ou da civilização, contra os defensores de projetos alternativos, ou da própria barbárie. Trata-se do enfrentamento entre os que defendem duas interpretações diferentes do próprio projeto moderno de mundo e do debate entre os defensores de interpretações divergentes para o significado e o papel da racionalidade humana no projeto de mundo que se está a construir.
O racionalismo extremo, compreensivo, ou não crítico, defende que a racionalidade humana é expressa na seguinte formulação: ‘no mundo do conhecimento humano, somente se pode aceitar aquilo que pode ser defendido por meio de argumentos ou da experiência’. Esse mesmo princípio da racionalidade extrema, em sua formulação negativa, afirma que toda pressuposição que não possa ser apoiada por argumento ou por experiência deve ser abandonada.
Popper argumenta que, conforme a formulação acima, o racionalismo extremo é inconsistente. 
Ele diz: “Portanto, é fácil ver que esse princípio do racionalismo não crítico é inconsistente; pois, uma vez que ele não pode ser apoiado por argumentos ou pela experiência, isso implica que ele próprio deveria ser descartado. (Ele é análogo ao paradoxo do mentiroso, isto é, à sentença que afirma sua própria falsidade.) O racionalismo não crítico é, portanto, logicamente insustentável; e desde que um argumento puramente lógico pode demonstrar isso, o racionalismo não crítico pode ser derrotado pela arma por ele próprio escolhida, isto é, o argumento”.(Popper, 1945, vol 2, p.230)
O argumento posto acima significa que as pressuposições são necessárias em toda estrutura argumentativa. Entretanto, não é possível satisfazer a exigência que todas as pressuposições sejam baseadas em argumentos. Aqueles que argumentam de forma compreensiva e pretendem que os sistemas argumentativos comecem com poucas pressuposições e que estas possam ser racionalmente demonstradas, o fazem de forma paradoxal ao apoiarem sua posição na pressuposição que é possível começar com poucas pressuposições e que elas necessitam ser racionalmente demonstradas. Entretanto, eles não apresentam argumentos em favor de sua própria pressuposição. Enfim, eles exigem demonstração de todas as pressuposições, entretanto, não demonstram sua própria pressuposição fundamental. Isso, certamente, é paradoxal.
O que tudo isso significa é que o racionalismo extremo, compreensivo, ou não crítico é insustentável de um ponto de vista lógico. 
Entretanto, os racionalistas críticos estariam preparados para preferir o racionalismo extremado ao irracionalismo. Isso por duas razões. Primeiramente o racionalismo extremo está mais próximo do racionalismo crítico do que o irracionalismo. Falta ao racionalismo exagerado uma postura mais modesta e auto-crítica que advêm do reconhecimento de seus limites. Em segundo lugar, o racionalismo extremo pode ser considerado inofensivo se comparado com os efeitos que podem advir de um irracionalismo exagerado, posto que a dificuldade mais séria que possui o racionalismo exagerado consiste na sua inconsistência lógica, não lhe sendo imputáveis objeções de natureza moral. 

II

Nesta segunda parte serão apresentadas as razões da alegação que o irracionalismo não oferece uma epistemologia irracionalista. Será ainda argumentado que a escolha entre o racionalismo e o irracionalismo tem implicações de natureza moral. A decisão de escolher uma ou outra, ou ainda uma terceira posição, que de alguma forma seja modificação das anteriores, é uma questão de escolha de natureza moral. Aqui será argumentado que essa escolha afetará profundamente nossa atitude para com os outros seres humanos e para com os problemas de toda a humanidade.
Conforme se tentou demonstrar acima, o racionalismo em sua forma exagerada não tem sustentação lógica sendo, portanto, o irracionalismo expresso em um princípio logicamente superior ao racionalismo não crítico. O princípio da irracionalidade, que implica na possibilidade de recusar todas, ou algumas, formas de argumentos, pode ser mantido sem que ao fazê-lo o interlocutor esteja cometendo qualquer tipo de inconsistência lógica. Entretanto, essa superioridade fica desde logo comprometida pela impossibilidade do irracionalismo oferecer fundamento para uma teoria epistemológica que demonstre os limites e as possibilidades do conhecimento humano. 
Uma teoria epistemológica seria constituída por uma série de teses, ou interpretações, para as quais pudessem ser oferecidos argumentos lógicos e experimentos. Seriam posições defensáveis de um ponto de vista argumentativo. Entretanto, argumentos racionais e controle empírico não têm qualquer efeito sobre aqueles que recusam o princípio da racionalidade, em qualquer uma de suas formulações. Certamente que se poderia reunir um conjunto irracional de informações com objetivo de propor soluções para os problemas epistemológicos. Aquilo que por ventura viesse a ser considerado uma epistemologia irracionalista seria um conjunto de sentenças aforismáticas, proverbiais, ou oraculares, sem qualquer tipo de estrutura argumentativa. Resta saber de que forma uma suposta epistemologia irracionalista seria um instrumento confiável de interpretação dos limites e possibilidades do conhecimento humano.
A adoção do princípio da racionalidade ou do princípio da irracionalidade tem conseqüências que afetam profundamente as nossas atitudes para com os outros seres humanos de uma forma geral. (Popper, 1969, p.292) Isso significa que a escolha da adoção de um princípio ou outro tem uma fundamentação de natureza moral. (Popper, 1945, p.232) A escolha da adoção do princípio da irracionalidade significa a opção por um princípio que não preconizará a necessidade de fundamentação racional para as condutas humanas, uma vez que os agentes não estão submetidos a nenhum conjunto de regras de consistência. Isso significa que os agentes não estão obrigados a oferecer qualquer tipo de argumentação que justifique as condutas adotadas nas diferentes situações. É certo que o irracionalismo pode ser combinado com a escolha de práticas associadas à crença na paz, na valorização da vida e no bem estar das pessoas. Entretanto, o que aqui se alega é que, facilmente, pode ser ainda combinado com outros tipos de crenças, como aquela que diz que os seres humanos estão divididos em senhores e escravos, ou que existem os que conhecem a verdade e aqueles que precisam ser convencidos dela. (Popper, 1945, p.246)
Os racionalistas poderão discordar com relação à natureza das decisões morais. Todos, contudo, concordarão que os argumentos podem ajudar a tomada de decisão sobre a moralidade dos atos. Alguns insistirão, por exemplo, que as teorias morais podem buscar oferecer critérios objetivos que nos permitam decidir sobre a bondade ou maldade das ações. (Burke, 1983, pp. 193-207) Outros como, Popper, não pretendem levar tão distante a racionalidade humana, e preferem preservar o caráter subjetivo e irracional das decisões morais apelando para a idéia que todos os seres humanos possuem consciência moral e que as decisões sobre a moralidade das condutas resulta do veredicto por ela proferido. (Popper, 1945, p. 238) 
Os irracionalistas estariam preparados para aceitar que as emoções e as paixões são os fundamentos das ações humanas e que é muito limitado e insignificante o papel desempenhado pela razão no controle do comportamento humano. 
Uma primeira objeção de natureza moral que pode ser feita ao irracionalismo concerne à alegação que a interpretação do caráter irracional da natureza humana está intimamente associada ao apelo à violência e à força bruta como último árbitro na solução das disputas e conflitos. Os conflitos se tornam especialmente relevantes para os seres humanos quando aquelas emoções e paixões mais construtivas, tais como o amor, o respeito, a devoção ao bem comum etc., demonstraram-se incapazes de resolvê-los. Nesse caso, a única alternativa que sobra ao irracionalista consiste em apelar para outras paixões e emoções humanas menos construtivas, tais como o medo, o ódio e a violência. (Popper, 1945, p. 235)
Uma segunda objeção moral consiste na afirmação que o irracionalismo enfatiza a desigualdade entre os seres humanos. Inspirados por paixões e emoções os seres humanos seriam propensos a considerar os outros como desiguais. O fato é que não sentimos as mesmas emoções por todas as pessoas. De um ponto de vista emocional dividimos as pessoas em próximas a nós e distantes de nós, em amigos e adversários, aqueles que pertencem à nossa tribo, à nossa comunidade de crença e os outros, em compatriotas e forasteiros. A igualdade entre os seres humanos é um ideal que necessita de um conjunto de argumentos para se tornar desejável. A igualdade não é um fato, mas um ideal político baseado em uma decisão moral. Isso não significa que o irracionalismo é inconciliável com a defesa da igualdade entre os seres humanos. Para o irracionalismo essa defesa poderia até mesmo ser inconsistente, sem que isso acarretasse maiores problemas. Entretanto, aqui se deseja argumentar, o irracionalismo dificilmente pode ser dissociado da adoção da atitude contrária à defesa da igualdade entre os seres humanos. A teoria que os seres humanos são desiguais é mais compatível com a resignação frente à natureza irracional do ser humano do que o irracionalismo quer fazer valer. (Popper, 1945, p.234)
Uma terceira objeção moral concerne à afirmação que o irracionalismo induz à consideração da pessoa do outro interlocutor e não de suas idéias. O irracionalismo implica a alegação que nossas idéias são expressão de nossas paixões e emoções. Portanto, há algo mais profundo nas pessoas e que se expressa nas suas idéias. Nesse sentido, as idéias seriam expressão superficial de algo que se esconde nas profundezas do irracional no humano. A adoção do princípio da irracionalidade leva à consideração do pensamento não por seus próprios méritos, mas a tomar em conta os sentimentos, ou outras formas irracionais de manifestação, do sujeito que sustenta um ponto de vista. (Popper, 1945, p. 234)
Uma quarta objeção moral ao irracionalismo expressa-se na alegação que a adoção do princípio da irracionalidade conduz à substituição de formas institucionais controladas pela razão e apropriadas para resolver conflitos, por emoções cujo aprofundamento implica no agravamento do conflito estabelecido. Isso parece ocorrer com a sugestão irracionalista que o amor é a paixão, ou emoção, capaz de estabelecer os critérios para a identificação das ações que são apropriadas para reger de forma correta as ações humanas. Essa interpretação conduz invariavelmente à adoção de procedimentos que resultam na imposição da escala de valores daqueles que amam sobre seus respectivos seres amados. De uma forma geral, as éticas fundamentadas no amor resultam na adoção de regras de conduta que expressam a vontade de uma das partes de submeter as outras, com o objetivo de fazê-las perceber aquilo que é realmente relevante para suas próprias felicidades, para salvar suas almas ou garantir um bem estar maior. Essas éticas têm resultado em lutas religiosas, em salvação de almas através da Inquisição, em guerras de defesa da civilização e da paz. (Popper, 1945, p. 238)
O que com tudo isso se quer argumentar é que existem razões para se acreditar que o irracionalismo conduz a adoção de uma série de regras morais que resultam em comportamentos violentos e expressivos de outros vícios morais. Os argumentos aqui apresentados não significam que necessariamente o irracionalismo conduza à adoção de regras imorais de comportamento. A força do argumento está na alegação que a adoção do princípio da irracionalidade não garante o oferecimento de instrumentos que permitam evitar, minimizar, ou combater decisões morais que coloquem resistência a determinados padrões de conduta imorais que desejamos evitar.


III

Nesta terceira parte serão apresentados os fundamentos de uma epistemologia construída a partir do princípio do racionalismo crítico ou irracionalismo mitigado, com especial referência à forma como Popper os concebe e que vieram a se constituir numa espécie de acervo de contribuições do moderno debate da filosofia da ciência, ou da teoria do conhecimento científico, nos últimos cem anos. O racionalismo, em qualquer uma de suas formas terá sempre um caráter irracional. Isso significa que qualquer pessoa que adote o princípio da racionalidade o fará a partir de uma decisão irracional. A adoção da racionalidade resulta sempre de uma crença irracional na razão. Essa é a razão pela qual a posição aqui proposta pode ser intitulada de racionalismo crítico, irracionalismo mínimo, ou irracionalismo mitigado. Portanto, o racionalismo crítico não pode ser jamais compreensivo, auto-convalidado, ou totalmente garantido por uma estrutura argumentativa. 
Entretanto, a explicitação do princípio da racionalidade, ou o conjunto das posições que dele podem ser inferidas, é susceptível de ser justificada através de uma cadeia de argumentos racionais e, portanto, compatíveis com o princípio da racionalidade pressuposto de forma irracional. Isso significa que a posição racionalista, isto é, a posição daqueles que pressupõem de forma irracional o princípio da racionalidade, pode ser racionalmente demonstrada como a que contem maior conteúdo informativo, como aquela que melhor resiste às nossas tentativas de examiná-la criticamente, no sentido de apontar inconsistências nos argumentos que se seguem de sua explicitação, indicar conseqüências indesejáveis que dela decorrem, bem como demonstrar que ela é incompatível com outros princípios dos quais não estaríamos dispostos a abrir mão.
Ademais dessa crença irracional na razão, uma série de teses estratégicas é proposta pelos racionalistas críticos no sentido de mitigar seu irracionalismo. Assim, são posições fundamentais do racionalismo crítico as seguintes proposições: 
1. Todos os seres vivos cometem erros. Alguns têm a habilidade de antecipar seus erros, identificar quando estão errados e aprender com eles. Entretanto, somente os seres humanos deliberadamente procuram por eles. Atitude de, intencionalmente, examinar nossas representações do mundo, nossas idéias e invenções em busca do erro é o que se considera postura crítica. Isso implica que podemos cometer erros, podemos identificá-los e, muitas vezes corrigi-los. O racionalismo crítico parte da constatação que nós somos capazes de produzir uma grande quantidade de teorias sobre o mundo. Entretanto, nossa ignorância permanece infinita. Popper afirma: “Com cada passo adiante, com cada problema que resolvemos, nós não somente descobrimos novos problemas irresolutos, mas descobrimos que, ali onde pensávamos estar assentados salvos em chão firme, todas as coisas são, na verdade, inseguras e em estado de transição”. (Popper. 1976, p.87) Assim, no que concerne ao erro, o racionalismo crítico considera mais importante examinar nosso conhecimento em busca de identificar o erro do que implementar estratégias que nos levassem a deixar de cometê-lo. (Bouveresse. 1978, p.12) A crítica é uma postura que permite o controle da falsidade de nossas idéias e teorias. Os argumentos críticos são sempre tentativas de demonstrar a falsidade, a inconsistência, ou impropriedade de uma teoria apresentada por alguém. 
2. O conhecimento humano se desenvolve através da construção de soluções com as quais tentamos resolver os problemas que nos propomos. As soluções propostas são sempre tentativas e jamais perdem o caráter de conhecimento hipotético e conjetural. Para o racionalismo crítico somente interessa saber se aquilo que afirmamos é falso. Se não posso dizer que é falso, então, o conteúdo daquilo que é afirmado pode ser verdadeiro e se torna relevante para fins especulativos e práticos. Podemos utilizar esse conhecimento para especular sobre o universo e praticar ações dentro dele. Entretanto, raras vezes sabemos que o conteúdo do que afirmamos é verdadeiro. Mas, para efeito de servir às nossas especulações e justificar nossas práticas, nosso conhecimento não precisa ser verdadeiro. Basta que não se possa considerá-lo falso. Para um racionalista crítico podemos pensar qualquer coisa sobre o real, desde que não exista uma razão para considerar o pensado como sendo expresso numa proposição falsa. O conhecimento humano avança por meio de conjeturas e eliminação de erros. Não existe garantia que o resultado desse processo seja a verdade, como muitos poderiam supor. (Ackermann, 1976, pp. 87-92) Nossas teorias não são relevantes porque são verdadeiras, mas, porque não existem boas razões para afirmar que são falsas. E teorias, cuja falsidade não podemos provar, são conjeturas e não necessariamente verdades.
3. As conjeturas que expressam nosso saber sobre as coisas necessitam ser criticáveis. A crítica é o instrumento de controle da falsidade das teorias. Teorias que não são criticáveis, através de argumentos e de experiências, não satisfazem o critério de racionalidade mínima anteriormente definido. (Popper, in Miller (ed.), 1983, pp. 357-365) Assim, as teorias podem satisfazer com maior ou menor precisão os critérios de criticabilidade. Uma vez que as críticas são sempre negativas, no sentido de buscar descobrir a falsidade das teorias, estamos tratando de critério de falseabilidade das teorias. Existem teorias que são empiricamente falseáveis, ou refutáveis. Elas são chamadas de teorias científicas. Existem teorias que não são refutáveis, ou seja, empiricamente testáveis, mas que são falseáveis, isto é, são susceptíveis de serem examinadas especulativamente, no sentido de descobrir se são, ou não são, falsas. Elas são as teorias metafísicas, lógicas e matemáticas. (Peluso; 1995, pp.31-39) As teorias científicas são sujeitas a um controle empírico mais rigoroso e nesse sentido são teorias que possuem um grau de falseamento maior, na medida em que sua falsidade pode ser testada por meio de experimentos com os fatos. E os fatos, principalmente aqueles que contradizem nossas teorias, não são nossas invenções. Entretanto, a satisfação dos critérios de criticidade não é uma peculiaridade apenas do conhecimento científico. Satisfazer os critérios de falseabilidade é parte da descrição geral da boa prática epistêmica. (Newton-Smith, W.H.; in O’Hear (org.), 1995, p.33) 


Conclusão 

A posição aqui apresentada e identificada como racionalismo crítico, não corresponde, em todos os seus detalhes às teses de Popper sobre o assunto. O fato é que as teorias de Popper foram objeto de um intenso debate, principalmente durante os anos entre 1960 e 1990. Nesse período se procedeu a uma discussão mais detalhada dos argumentos postos por Popper na explanação de suas teses, bem como, a posição do chamado racionalismo crítico foi depurada com a identificação de algumas teses relevantes, que vieram a constituir no núcleo central da teoria. 
No que concerne particularmente à posição de Popper quanto à fundamentação do princípio de racionalidade as discussões se desenvolveram em três direções. Foi fortemente criticada, por O’Hear, a afirmação que o princípio de racionalidade, em qualquer uma de suas formulações, é baseado em uma fé irracional na razão. Na interpretação dele, Popper apenas demonstrou que o princípio de racionalidade não satisfaz uma demanda, a qual, por razões lógicas, não pode ser satisfeita. Entretanto, isso dificilmente pode ser considerado como uma demonstração de sua irracionalidade. Portanto, Popper teria fracassado em sugerir qualquer padrão racional que o princípio de racionalidade viesse a infringir. (O’Hear, 1980, pp. 148-153) Bartley, por sua vez, argumenta no sentido de aprofundar as implicações da irracionalidade do princípio de racionalidade. Assim, alega que, uma vez que o racionalista admite que sua posição se fundamenta em uma fé irracional, ele não disporia de base para toda crítica dirigida àqueles que são irracionalistas. Todas as posições seriam, em última instância, fundamentadas em escolhas arbitrárias. Assim, o irracionalista, quando desafiado sobre a irracionalidade do fundamento de sua posição, estaria autorizado a alegar que o mesmo faz o seu interlocutor racionalista. (Bartley, 1962, pp. 133-134) Outra linha de questionamento das teses de Popper sobre o sentido da racionalidade foi proposta por Paul Bernays, o qual argumenta no sentido de ampliar o conceito de racionalidade proposto por Popper. Assim, a racionalidade seria caracterizada por um elemento conceitual que transcende o que se percebe e se imagina e produz um certo tipo de entendimento. Nesse sentido, a racionalidade humana não se expressaria unicamente na critica, mas também na criatividade. (Bernays, in Schilpp, 1974, vol. I, pp. 597-605 e Popper, in Schilpp, 1974, vol II, pp. 1081-1091) Certamente todas essas críticas foram relevantes para a compreensão dos problemas que estão envolvidos na posição sustentada por Popper. Entretanto, nenhuma delas foi suficiente para demonstrar a insustentabilidade da tese que há um fundamento irracional na adoção do princípio de racionalidade.
Somente algumas das teses apresentadas por Popper constituem hoje o acervo das teorias que caracterizam o racionalismo crítico. Muitas de suas posições concernentes às peculiaridades do método científico, com especial referência ao problema da indução, foram criticadas e se chegou a considerar demasiadamente simplificado o seu modelo de interpretação do procedimento científico. Sua interpretação do método científico nas ciências sociais, principalmente sua teoria da lógica da situação, tem sido considerada insatisfatória. A sugestão de que a teoria darwinista é apropriada para interpretar o desenvolvimento do pensamento humano tem sido contestada. Entretanto, há um conjunto de posições que foram sugeridas por Popper e algumas que decorreram da discussão de suas idéias que constituem hoje a base do racionalismo crítico.
O texto que aqui se conclui não pode ser considerado como uma recuperação da forma como Popper teria resolvido a questão da fundamentação do racionalismo crítico ou do irracionalismo moderado, principalmente, se o que está em pauta é o confronto com o irracionalismo. A solução de Popper, conforme sugerida nas vezes em que abordou esse tema, teria sido mais insistente na repulsa ao irracionalismo e na insistência no caráter irracional e volitivo da própria condenação da natureza imoral do irracionalismo. Aqui se tentou preservar espaço para aqueles que, discordando de Popper, sustentam uma visão mais racional da própria fundamentação dos argumentos éticos e desejam criticar a irracionalidade em bases racionais. 


BIBLIOGRAFIA
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Stowe, David
[1982] “Popper and after: four modern irrationalists”. Oxford: Pergamon Press, 1984.

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Prof. Luis A. Peluso
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Luis Alberto Peluso possui graduação (Bacharelado e Licenciatura) em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1967), graduação ( Bacharelado) em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (1970), mestrado em Filosofia da Ciência pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1978) e doutorado em Filosofia - University of London (1987). Professor Titular na Universidade Federal do ABC (UFABC). Tem desenvolvido pesquisa na área de Filosofia da Ciência, especialmente sobre a escola do racionalismo crítico, com especial referência ao pensamento de Karl R. Popper e em Ética, com ênfase no Utilitarismo Anglo Americano Clássico, atuando principalmente nos seguintes temas: epistemologia, Karl R. Popper, ética, utilitarismo clássico, Jeremy Bentham. Endereço para acessar este 

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