quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Angola. O PAÍS TEM DONO?

Luísa Rogério – Rede Angola, opinião
Numa altura em que o país tentava perceber os factores que concorreram para a brutal morte de Rufino Marciano António, de 14 anos, outro direito fundamental acaba de ser banalizado. Os acontecimentos foram, supostamente, desencadeados pelos mesmos actores da tragédia que abalou o elementar direito à vida negado ao adolescente do Zango 3. Em busca de melhor entendimento do caso ainda envolto numa aura de impunidade, repórteres do jornal Noza Gazeta deslocaram-se à área atingida pela onda de demolições. Postos no terreno a natureza dos acontecimentos alterou a sua condição de repórteres para vítimas. Igualmente vitimizadas foram a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão, o direito à informação e demais garantias conexas ao exercício da actividade jornalística consagradas na Constituição da República de Angola.

A inesperada reportagem encaixa-se sob medida num eventual manual de práticas com vista amordaçar a imprensa. O redactor Onélio Santiago, o repórter fotográfico Manuel Tomás e o motorista Segunda de Oliveira conheceram a materialização do termos momentos de terror. Durante mais de quatro horas ficaram sob custódia dos militares que fazem o asseguramento da zona de demolições no Zango III, em Luanda. Foram agredidos verbalmente, um deles foi esbofeteado. Os três estiveram temporariamente sem as máquinas fotográficas, agendas e blocos de anotações. Telemóveis, carteiras com documentos, dinheiro e os passes de serviço não foram poupados. Até os atacadores dos calçados foram obrigados a tirar. Por último, segundo a narração detalhada do sucedido, os militares lhes obrigaram a carregar blocos de cimento para construção civil. Como se não bastasse terem sido impedidos de fazer o seu trabalho, acrescentaram a humilhação numa clara demonstração desproporcional de força e de poder.

O relato dos acontecimentos na manhã de 10 de Agosto aflora um misto de indignação e incredulidade. O envolvimento das Forças Armadas Angolanas (FAA) e de efectivos da Polícia Militar (PM) suscita o questionamento público do papel destes órgãos cuja principal vocação é a defesa do Estado. De tanto o aparato sobrepor-se à componente humana que dá corpo ao Estado como entidade jurídica, é comum ma nossa realidade ocorrer de modo mais ou menos solene a omissão de que os cidadãos de um país são a componente que funda e sustenta o Estado. Sim, o cidadão vivo e individualmente considerado. Que tem fome, precisa de um ligar para viver, cumpre os seus deveres, mas espera que as instituições do Estado estejam ao serviço de todos.

Impossível conter arrepios de indignação na passagem do relato que descreve o militar a ameaçar espetar lapiseira “confiscada” no pescoço do repórter. “Tá brincar de maluco? Não brinca, rapaz! Sabes quem nos meteu aqui? Quem nos meteu aqui é o dono do país”. Essas são expressões atribuídas literalmente ao militar pelas vítimas do abuso. A utopia dos direitos iguais não poderia ter sido maculada de forma mais contundente.

O Secretário Geral do Sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA) denunciou o abuso de autoridade, tendo demandado do Chefe de Estado Maior General das FAA um esclarecimento, na forma institucional apropriada, em relação ao comportamento dos militares envolvidos no episódio. O jornal manifesta a intenção de avançar uma queixa-crime.

O facto de o provedor de Justiça ter sido impedido por militares do Posto Comando Unificado (PCU) de visitar o bairro Walale logo a seguir a morte do adolescente de 14 anos e o flagrante atentado ao exercício da actividade jornalística atestam a falta de alinhamento da acção dessas forças com a existência de direitos e instituições, além das ordens que supostamente recebem em parada. A concentração de militares na Zona Económica Especial Luanda-Bengo assim como a particularidade destes fazerem valer a sua autoridade com o recurso a “lei da bala” não se justificaria nem num estado de excepção constitucional. Por que razão são militares a resolver sobreposições no aproveitamento da terra, contrapondo interesses empresariais ao direito à habitação, com a agravante de o fazerem com força letal?

Por outro lado, deve dar espaço a pertinentes reflexões a alusão ao “dono do país”, ao que tudo indica uma figura superior, quase mitológica, perante a qual todas as normas e instituições parecem ficar esvaziadas das funções que têm no quadro do estado democrático e de direito. De repente o Provedor de Justiça vira “provador”. A morte de uma criança é reduzida a mero acidente sem lugar nem nas notas de rodapé dos maiores discursos da actualidade política. Enquanto república aos militares precisa de ser incutida a cultura de que Angola é de todos e de cada um dos seus filhos, ao serviço dos quais estão as forças armadas. É a lei que define o exercício e os limites desse poder.

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