As autoridades portuguesas entregaram uma das pérolas da economia nacional, a Portugal Telecom, a um polvo multinacional chamado Altice, propriedade de um indivíduo que tem como pátria o dinheiro, chamado Patrick Drahi, e agora lavam pilaticamente as mãos perante a hecatombe humana anunciada, e que não se fez esperar.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
Em ocasiões como estas, de tal maneira frequentes ao longo de décadas que podemos qualificá-las como um comportamento sistemático, é habitual centrar as atenções e as responsabilidades das nefastas consequências sobre os beneficiários directos da malfeitoria, deixando na sombra aqueles que a promovem e facilitam – os quais têm obrigação de conhecer, e sem dúvida que conhecem, o jaez dos indivíduos e entidades que contemplam com as benesses. Seria errado escrever aqueles com quem fazem negócio, porque não é de negócio que se trata, mas sim de submissão da qual as principais vítimas são os cidadãos portugueses.
O volátil ministro Santos Silva, sempre com palavra fácil para uma coerência improvável, declarou que também ele faria greve ao lado dos trabalhadores da PT, se fosse um deles, por causa da entrada violenta que a entourage de Patrick Drahi fez na empresa, pronta a não deixar pedra sobre pedra.
Era greve que Santos Silva faria se estivesse na PT… E como membro do governo o que faz? Coitado, nada pode fazer. Há as entidades reguladoras, essas coisas inúteis para um regime que tem a desregulação como objectivo; e se exemplos faltassem bastava-nos apreciar o comportamento desse expoente regulador que é o Banco de Portugal. Será que além de obedecer a Bruxelas, pagar a dívida, reverenciar o défice, deixar os reguladores desregular não há nada mais que o governo tenha para governar?
Coitado do ministro, que nem governa em casos de lesa-pátria, nem faz greve, apenas fala, na prática escarnecendo dos milhares de trabalhadores que estão com os empregos em risco depois de o país os abandonar nas mãos de escravocratas.
Porque é impossível que o ministro Santos Silva, os seus colegas deste governo e dos governos anteriores não conheçam a história da aberração social que é o dono da Altice a quem ofereceram a PT. É certo que os grandes empresários da actualidade são cleptocratas ou para lá caminham, e, se não fosse Drahi o beneficiado, seria um outro qualquer. No entanto, era elementar conhecer bem as pessoas e as instituições a quem se entregam as vidas de milhares e milhares de famílias portuguesas.
É claro que se o interesse nacional fosse prioritário, se os cidadãos portugueses fossem mais importantes que as amortizações das «ajudas» da troika ou a obsessão do défice, a PT e muitas outras grandes empresas não precisariam de ser oferecidas a ninguém, continuariam nas mãos do Estado como entidade que tem o dever e a obrigação de representar todos os portugueses.
A opção, porém, foi a de saldar o país. Mais uma razão para o ministro Silva, colegas e ex-colegas terem a obrigação de saber, por exemplo, o que os jornalistas do L’Express escreveram sobre a «brutalidade cega» com que a Altice assumiu a revista, onde, de uma penada, reduziu os efectivos de 700 para menos de 500 pessoas; ou de conhecer o drama do Libération, esse farol da «esquerda» com tiques maoístas para as elites bem-pensantes, amputado de dois terços dos seus trabalhadores em dez anos; ou deveriam ter a noção de que a Numericable-SFR, agora Altice francesa, vai despedir cinco mil trabalhadores, um terço dos efectivos, até 2019; ou ainda de que a entrada de Patrick Drahi no grupo de televisão por cabo Hot, em Israel, decorrente de «motivações sionistas sinceras», foi assinalada por 2800 despedimentos à cabeça, mesmo que isso tenha representado uma drástica baixa de qualidade dos serviços prestados e a deserção de 16% da clientela. Pouco depois – estávamos no início da década actual –, Drahi tornou-se o cidadão israelita mais rico e, por extensão desse estado privilegiado, passou a ser visita frequente do então presidente Shimon Peres, digamos que estavam bem um para o outro.
O cenário de hecatombe laboral é sempre o mesmo por onde passa Patrick Drahi, desde os anos noventa. Marroquino de nascimento em família judia, com nacionalidades francesa, israelita e portuguesa, residente na Suíça, proprietário de uma holding pessoal registada no paraíso fiscal da ilha britânica de Guernesey, através da qual gere a Altice, por sua vez parte de um consórcio com a Societé Generale que integra o gigante Dassault, com sede no Luxemburgo e cotado na bolsa de Amesterdão, Drahi é um símbolo destes tempos de caça planetária ao lucro sem olhar a meios, muito menos aos seres humanos.
A mais inocente das suas declarações conhecidas é a de que «não gosta de pagar salários» e, por isso, «pagará sempre o menos possível». Patrick Drahi diz o que todos os outros grandes patrões fazem, mas não ousam confessar. Porém, se as autoridades portuguesas que lhe atribuíram a nacionalidade Gold e lhe ofereceram a PT tivessem procurado informações, nem que fosse apenas pela via institucional, saberiam o suficiente sobre os atributos do seu parceiro. Quando compareceu perante a Assembleia Nacional francesa para explicar a estratégia para a Numericable-SFR nas mãos da Altice, Drahi sentenciou que «não se constrói o novo com o velho; não se ganha com gente que não ganha nada há três anos»; ou então: «os nossos métodos de gestão são diferentes dos outros, porque avançamos mais depressa» – todo um programa implicitamente cheio das melhores intenções para com os direitos laborais, a estabilidade do emprego e, sobretudo, de respeito por quem construiu e desenvolveu as empresas que compra.
Ora os governos portugueses, uns atrás dos outros, envolvidos na delapidação da propriedade nacional através dos maus-tratos infligidos ao património económico do país, incluindo a PT, tinham obrigação de conhecer estas informações, que são públicas e acessíveis. Se não conhecem, é grave; se conhecem, grave é.
Em França, houve uma ocasião em que o ministro Arnaut de Montebourg, do governo de Hollande, combateu a entrega da Numericable a Drahi, argumentando que a multinacionalidade da Altice está montada com o propósito de garantir a expatriação de capitais a partir das ramificações do grupo, onde quer que estejam a funcionar. Logo passou Montebourg à história, e a pasta da Economia foi assumida por Emmanuel Macron, mudança que tornou esplendoroso o cenário da Altice. Cimentou-se então uma íntima colaboração entre ministro e empresário, que depois foi extensiva à formação da organização En Marche e aos consumados projectos presidenciais de Macron, para os quais Drahi cedeu banqueiros e outros quadros agregados ao seu staffrotineiro. Mais uma vez Les beaux esprits se rencontrent, que é como quem diz, prosaicamente, uma mão lava a outra.
Ora os governos portugueses envolvidos na delapidação da propriedade nacional através dos maus-tratos infligidos à PT tinham obrigação de conhecer estas informações, que são públicas e acessíveis. Se não conhecem, é grave; se conhecem, grave é.
Apesar das suas múltiplas nacionalidades, Patrick Drahi é um expatriado, tal como o dinheiro que vai amealhando. Encontram-se todos na Suíça, onde o dono da Altice reside, dividido entre a chiquérrima estância de ski de Zermatt, contemplando seraficamente o monte Cervin, e os bairros nobres de Genebra, por sinal áreas do país com maiores benefícios fiscais para os que ali acondicionam os seus bens, graças a vistos Gold da mais fina e proveitosa qualidade. Na Suíça, de onde ordena despedimentos em massa em França, Portugal, Estados Unidos, Reino Unido, Israel, Luxemburgo, República Dominicana, Panamá, Patrick Drahi tem um hobby para dar lustro aos seus incontáveis proveitos: coleccionar mansões no valor de dezenas de milhões de euros cada uma. Chama-lhe «projecto sete céus», no caso dos palácios de montanha, que são pelo menos três até ao momento; no bairro milionário de Cologny, em Genebra, as mansões em seu nome ou da esposa já são quatro, sem contar os apartamentos de luxo distribuídos pelas duas regiões suíças. Para fazer estes investimentos, Drahi usa as suas empresas pessoais NDZ e Conef, provando ser um homem precavido e de muitos artifícios.
Em paralelo, Patrick Drahi é uma pessoa discreta, reservada, não gosta de acontecimentos mundanos, veste-se modestamente – enfim, é um ser humano vulgar, dotado ainda com a virtude de ser bastante motivado pela caridade. «Dar tornou-se uma necessidade», confessou num jantar em Paris organizado em favor da Universidade Hebraica de Jerusalém. «A filantropia é o caminho para preparar o futuro», acrescentou. Um futuro de «sete céus» para quem transforma a vida de dezenas de milhares de trabalhadores num inferno.
Ao venderem a PT, tal como em qualquer privatização daquilo que não lhes pertence, os governos portugueses tiveram e têm sempre altíssima probabilidade de entregarem a gestão dos bens e da vida dos cidadãos à falta de escrúpulos dos degenerados sociais que verdadeiramente governam o mundo. No caso da Portugal Telecom, porém, o esmero foi grande: escolheram um dos expoentes da cleptocracia e ainda fizeram dele cidadão português. Como se já não houvesse bastantes lucro-dependentes por cá.
E agora lavam daí as mãos, depois de darem a sua contribuição para o triunfo dos sociopatas.
Foto: Patrick Drahi, fundador da Altice, na Bolsa de Valores de Nova Iorque | Créditos Justin Lane / EPA
Nenhum comentário:
Postar um comentário