segunda-feira, 8 de agosto de 2016

UM INESGOTÁVEL MANANCIAL


1 – Está-se ainda longe de perceber em toda a sua amplitude, a composição de meios e de forças que integraram os projectos de luta contra insurreição por parte do Estado Novo, do regime de Ian Smith na Rodésia e do “apartheid” (desde antes da sua deriva de “border war”), tal como ainda falta fazer um inventário mais amplo da Operação Condor na América Latina, por que houve um manancial de inteligência de origem nazi e fascista que foi aproveitado após a IIª Guerra Mundial na Europa, na América Latina e em África, acerca do qual há imensas dificuldades em obter informação histórica e analítica, particularmente no seu fulcro na Europa e nos Estados Unidos (algo que o Pentágono e a NATO fecham “a sete chaves”).

Para compreender as potencialidades amplas dos núcleos duros onde se deu morada aos restos nazis e fascistas na Europa e nos Estados Unidos, núcleos duros mentores das doutrinas cristãs democráticas de contra insurreição, é extremamente sensível perceber os processos de inteligência, de contra inteligência, assim como de seus suportes económicos sócio-políticos, financeiros, de propaganda e de contra propaganda e, nesses aspectos há muita coisa ainda por esclarecer.

O investigador Daniele Ganser conseguiu fazer uma das poucas abordagens sérias sobre o assunto (Operação Gládio, Loja P-2, “Aginter Press”…), chamando a atenção para a guerra secreta que, alimentando a Guerra Fria, se desencadeava ideológica e operativamente “contra o comunismo”, a partir de redes “stay behind”, arregimentando algumas das mais retrógradas entidades no poder na Europa e nos Estados Unidos, que atraíram operacionais que antes haviam feito parte das hordas derrotadas de nazis e de fascistas, no rescaldo da IIª Guerra Mundial e os colocavam à disposição dos serviços de inteligência da hegemonia unipolar, na Europa, na América Latina e em África, (neste caso aproveitando desde logo os processos traumáticos da descolonização).

Para Portugal a “primavera Marcelista” ampliou o espaço de manobra nas colónias: Portugal saía da época em que o domínio correspondia aos interesses e conveniências duma burguesia agrária ainda meio feudal, para a gestação duma burguesia industrial (os Abecassis, os Mello, os Champalimaud…) que refinava os processos do exercício do poder, da inteligência e da diplomacia.

2 – O “Le Cercle” foi um desses núcleos duros e dele chegaram a fazer parte entidades africanas ao nível de Mobutu, de Savimbi, de Ian Smith, dos Botha, dos Oppenheimer, ou dos Tiny Rowlands, dos Jorge Jardim, dos António Monteiro, todos eles mais ou menos absorvidos pelas casas aristocráticas dos Rothschields e dos Rockefeller, da inteligência portuguesa que se iria suceder ao 25 de Novembro de 1975 e pelas filtragens do MI6, da CIA…

O “Le Cercle” era uma iniciativa ao nível dos escalões das aristocracias e dos poderes mais proeminentes na Europa e Estados Unidos, que faziam a ponte privada entre um Vaticano pan europeu, ultra conservador e a inteligência anglo americana, onde não só coube o Estado Novo fascista da Concordata com a Santa Sé (e do que dele derivou), mas também os elementos mais conservadores das alas da Igreja Católica e Apostólica Romana, com alguns similares das igrejas protestantes anglo-saxónicas, incluindo alguns ramos que se espalharam pela África Austral.

Nessa iniciativa privada, entre muitos grupos integrantes, faziam-se sentir a Opus Dei e os Cavaleiros de Malta (a propósito: há notícias que Marcelo Rebelo de Sousa responde além do mais à Opus Dei)!

O imenso campo das contradições, obrigava a essas correntes à cultura da ambiguidade e da ingerência manipuladora e clandestina, com base em interesses e conveniências do capital injetado em África pelas oligarquias dominantes.

De entre as personalidades europeias mais influentes desse núcleo duro, contam-se os alemães da CDU, Konrad Adenauer e Franz Joseph Strauss, o italiano Giulio Andreotti, o francês Jean Monet, a britânica Margareth Thatcher… e por parte dos Estados Unidos evidenciou-se Ronald Reagan, que deu abertura aos “cristãos” mais conservadores como o “Conservative Caucus”, um dos maiores apoios norte americanos ao “freedom fighter” Savimbi (conforme assim considerava Ronald Reagan), que tinha à frente Howard Phillips, ele próprio também motivado no apoio a John Garang, do Sudan People Liberation Front, cuja luta deu oportunidade à separação e independência do Sudão do Sul…

Foi com o resguardo desse núcleo duro que Ronald Reagan e Margarth Thatcher inauguraram a época de capitalismo neoliberal nos seus próprios países, algo que chega a nossos dias... Foi também assim que o choque e a terapia neoliberais haveriam de sacudir os alvos da hegemonia unipolar, na sequência imediata do fim da Guerra Fria!

3 – Os grupos de operacionais foram utilizados na Europa, onde tiveram bases importantes em especial nos países do sul (Grécia, Itália, França, Espanha e Portugal), havendo rastos de suas acções em África (a favor do colonialismo e do “apartheid”), como na América Latina (por dentro do miolo das ditaduras que se disseminaram de forma tão sangrenta como no Chile, na Argentina, na Bolívia, no Brasil, no Uruguai e no Paraguai, no âmbito da vasta Operação Condor).

Uma aptidão a esse nível, só poderia ser suportada na sua superestrutura ideológica e operacional, pelos Serviços de Inteligência de potências como os Estados Unidos, ou a Grã-Bretanha, tendo em conta os interesses e estratégias que advinham do seu aproveitamento, unindo os ideólogos e os interesses consubstanciados no “Le Cercle” às redes “stay behind”, como as da Operalão Gladio e sua ramificação Aginter Press.

Os traços doutrinários e ideológicos apareciam sempre nas iniciativas mercenárias, por que até os mercenários precisam de justificar os seus actos, para além do dinheiro que ganham com seus crimes-providência, sob encomenda!

Na Europa, a NATO dava garantias à amplitude da operacionalidade desses meios, pelo que muitos entendem que eles eram redes “stay behind” que operavam ao seu dispor…

As ideologias que serviam de cobertura era a dos democratas cristãos, que facilmente podiam operar em Portugal e Espanha por dentro das estruturas fascistas, tendo em conta os laços especiais com as alas mais conservadoras da Igreja Católica e Apostólica Romana e as igrejas protestantes que se contrapunham em África (ligadas quase sempre à cartilha de descolonização norte-americana).

Esse manancial não foi também desperdiçado quando chegou a hora do choque e da terapia neoliberal, por via de redes que foram implantando caos e terrorismo, pois os “freedom fighters”podiam ter aproveitamentos mais testados, formatados e refinados, a fim de estabelecer a antítese subserviente que servia tal como a tese ao domínio de 1% sobre o resto da humanidade!

4 – Em Portugal e colónias, a Concordata dava ampla cobertura e os laços entre Salazar e o Cardeal Cerejeira garantiam a sublimação das conexões ao nível portanto da superestrutura ideológica do Estado Novo, como de eventuais redes especiais por dentro dos instrumentos de poder de estado, ou no seu reforço (caso da “Aginter Press”).

Na Itália, como na Alemanha, os democratas cristãos foram a opção, durante muitos anos, (na Itália com Alcide de Gasperi, na Alemanha com Konrad Adenauer), para fazerem o aproveitamento daqueles que estavam implicados no funcionamento dos aparelhos de estado dos fascistas e dos nazis, respetivamente, as redes “stay behind” da NATO e da CIA, como de suas similares europeias (da Alemanha Ocidental, da Itália, da Grã Bretanha, da Grécia, da Espanha, do Estado Novo de Portugal…).

Isso explica em parte o facto de Portugal ser um membro fundador da NATO e seu beneficiário nas guerras que o Estado Novo levou a cabo nas colónias.

O Estado Novo aproveitou pois essa superestrutura e fez acrescer os seus próprios operacionais, introduzidos uns na PIDE/DGS (a Gestapo alemã formou os primeiros quadros da PIDE/DGS), outros na Legião Portuguesa, outros ainda nas Forças Armadas Portuguesas (em especial aqueles que integraram a nível de cúpula, ou a nível operacional, os dispositivos principais de contra insurgência), outros aparentemente mais soltos na diplomacia (casos de Jorge Jardim e António Monteiro, com maior ou menor cobertura diplomática), tendo em conta a resposta ao Movimento de Libertação em África.

O Estado Novo deu portanto espaço à criação da “Aginter Press” que iria fazer trabalho sujo ali onde a PIDE/DGS tinha muita dificuldade em chegar: nas capitais africanas circunvizinhas à Guiné Bissau (Dakar e especialmente Conacry), a Angola (especialmente em Lusaka, já que em Kinshasa com a presença de Mobutu isso estava facilitado) e a Moçambique (Dar es Salam, Blantyre e Salisbúria, hoje Harare).

Em Kinshasa, a sede da FNLA ficava muito próximo da estrutura diplomática portuguesa acreditada no Zaíre de Mobutu (com cobertura da embaixada de Espanha), algo que teve o seu peso no sistema de informações da PIDE/DGS (uma excepção no exterior graça a Mobutu), assim como na trajectória de diplomatas próximos dos democratas cristãos, como António Monteiro!...

A “Aginter Press” utilizava o disfarce duma modesta Agência de Informação, mas era constituída por operacionais provenientes das redes “stay behind” da NATO, com o objectivo de realizar missões onde a PIDE/DGS raramente podia chegar e com capacidades de contra propaganda raramente utilizados por aquela polícia política repressiva do Estado Novo.

O seu papel na luta contra insurgente, não foi negligenciável, como não o foi em termos de capacidade operativa de inteligência, tendo em conta a sua aptidão para confundir o inimigo em termos de contra-propaganda, uma imagem de marca do seu “modus operandi”.

O assassinato do general Humberto Delgado enquadra-se na planificação e acção da “Aginter Press” e terá sido um ensaio que potenciou outros voos em África e na América Latina.

Os assassinatos de Eduardo Mondlane, como de Amlcar Cabral, indiciam processos especiais que a“Aginter Press” cultivava e a revolta do leste do MPLA, com Daniel Chipenda à cabeça, terá resultado dum aturado trabalho de inteligência em Lusaka na Zâmbia, envolvendo o próprio Kenneth Kajunda.

 5 – Abaixo desse patamar e em África, “plataformas” como Portugal, a Rodésia, ou a África do Sul, tornaram-se parte interessada nesse tipo de instrumentos, dada a sua versatilidade operativa, as características do seu “modus operandi” e o grau de segredo de suas possibilidades, algo que funcionou também por via de “vasos comunicantes”, quando o “apartheid” se aproximou das ditaduras Latino Americanas do lado ocidental do Atlântico Sul.

A cidade do Cabo foi (e é ainda) providencial para esse tipo de núcleos duros, como o havia sido para Cecil John Rhodes.

Se a NATO era o maior fornecedor do armamento de que se serviu o Estado Novo de Portugal para levar por diante as guerras coloniais nas três frentes que foram impostas pelo Movimento de Libertação em África (Guiné Bissau, Angola e Moçambique), o emprego desses meios humanos instrumentalizados pelos vínculos mais retrógrados, supria uma parte importante das dificuldades das inteligências de Portugal, da Rodésia do Sul de Ian Smith e da África do Sul do “apartheid”, em especial em países como por exemplo a Guiné Conacry, a Zâmbia, ou o Malawi.

6 – A PIDE/DGS teve sempre dificuldades directas em operar em muitas capitais africanas de países independentes, como Brazzaville, Dar es Salam, ou Lusaka.

A capital do Zaíre, Kinshasa, dava-lhe com o regime de Mobutu outro tipo de garantias, (essa foi a“tarimba” de alguns diplomatas portugueses, inclusive de António Monteiro, nascido em Angola ou do jovem Durão Barroso)… mas Brazzaville, Dar es Salam e Lusaka eram mais difíceis.

Em Kinshasa o cartel de diamantes jogou sempre muito forte, em suporte da clique de Mobutu (de que Holden Roberto fazia parte) e um dos seus “homens de mão”, Maurice Tempelsman, conotado por outro lado com a CIA, garantia aos portugueses um suplemento de capacidades por via do tráfico de diamantes proveniente de rios comuns aos dois países, como o Cassai e o Cuango.

Uma rede importante de comerciantes portugueses espalhados pelo Bas Zaíre, Kinshasa e Kassai Ocidental, permitia imensas potencialidades de recrutamento, até por que uma parte do círculo próximo de Mobutu era de luso-descendentes (entre ele João Nunes Setti Yale)…

Apesar da majestática companhia que era a Diamang, muitos traficantes portugueses de então foram recrutados pela PIDE/DGS e suas actividades tiveram um espectro importante dentro de Angola, como no exterior (por exemplo na Bélgica, por via das Bolsas de Antuérpia), interligando-se com as redes disponíveis a Mobutu, no outro lado da fronteira de Angola.

Desse modo a PIDE/DGS recorria aos nexos com os serviços de inteligência da Rodésia de Ian Smith e do “apartheid”, com a inteligência de várias componentes africanas do “lobby” dos minerais (entre eles os que compunham o cartel de diamantes formado a partir do génio de Cecil John Rhodes, o nó de Kinshasa, mas também as redes sustentadas pelos interesses mineiros no estanho e no cobre, com os Rockfeller e Oppenheimer à cabeça) e por fim do instrumento “Aginter Press”, que só se veio a conhecer depois do 25 de Abril de 1974…

A Bélgica também utilizava essas bases de sustentação colonial e neo colonial, por exemplo: quando o Primeiro-Ministro congolês Patrice Lumumba foi assassinado, o jovem conde Étienne d’Avignon (um homem-de-mão do clã Rockfeler na Europa), ocupava um posto diplomático justamente em Brazzaville…

Quando o poder do Estado Novo ruiu por via do golpe do Movimento das Forças Armadas Portuguesas, a “Aginter Press” desapareceu de Lisboa, onde tinha sede e instalou-se em Madrid, o que não impediu que muitos dos seus operacionais em África se viessem a instalar na África do Sul e Rodésia, ao serviço dos Botha e de Ian Smith, sem prejuízo de fazerem parte das acções operacionais para dentro de Angola, de Moçambique e do Zimbabwe…

Além do mais elas poderiam conotar-se com a CIA, com o MI6 e com o Mossad!
  
Ilustrações:
- Os exércitos secretos da NATO – Daniele Ganser (capa do livro, edição em espanhol);
- Aginter Press;
- A guerra secreta de Salazar em África – Aginter Press – Luis da Costa Correia (capa do livro, edição portuguesa);

- Jorge Jardim, agente secreto – José Feire Antunes (capa do livro).

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