Alfredo Maia* | opinião
Quem segue com alguma atenção a silly season costuma enquadrá-la numa categoria especial de notícias tão tolerável que os próprios jornalistas parecem acomodar-se ao fenómeno com escasso juízo crítico e a opinião pública encara-a com bonomia. Neste Verão, as coisas mudaram bastante de figura.
As pessoas que seguem com alguma atenção os «acontecimentos» mediáticos mais bizarros das temporadas estivais – a silly season – costumam enquadrá-los numa categoria especial de notícias tão tolerável que os próprios jornalistas parece terem-se acomodado ao fenómeno com escasso juízo crítico e a opinião pública encara-a com bonomia.
No fundo, passada a época, esgotada a excepção, a vida segue…
Neste Verão, as coisas mudaram bastante de figura, com a dramatização elevada a um grau superlativo nunca visto da chamada «época de incêndios florestais», em consequência do incêndio de Pedrógão Grande e municípios vizinhos, com o trágico cortejo de mortos, feridos, desalojados e desocupados.
Mas mudaram também (ou sobretudo?) com o particular contexto de combate político, por estes meses acrescido com as naturais fricções próprias de épocas pré-eleitorais, com a pugna pelos órgãos das autarquias locais de 1 de Outubro em frenesim crescente.
Neste quadro, a direita ressabiada procura municiar-se com os mais pequenos incidentes e fantasias para atacar o Governo e tentar minar a correlação de forças resultante das últimas eleições legislativas.
Os media, e sobretudo os editocratas, vão-lhe na peugada: não há semana que não traga atado ao mais insignificante «caso» a previsão apocalíptica de uma rutpura, ou pelo menos de uma zanga entre os partidos que celebraram as posições conjuntas que possibilitaram a investidura do governo do Partido Socialista.
O último «caso» é a tão misteriosa lista de vítimas da tragédia de Pedrógão, que o PSD e o CDS-PP, numa deriva demagógica nunca vista mas com repercussão garantida nos media, atingindo o grau zero da decência e do respeito pelo sofrimento das pessoas, decidiram elevá-lo à classe de crise política da mais elevada gravidade.
A líder do CDS-PP chegou a «admitir» apresentar uma moção de censura e o novel líder parlamentar do PSD concedeu, com severa solenidade, um ultimato de 24 horas para que o Governo publicitasse a lista nominal das vítimas mortais, ameaçando sabe-se lá com que sete novas pragas do Egipto, se a execrável exigência não fosse satisfeita.
Divulgada a lista pela Procuradoria-Geral da República, lá meteram os dois a viola ao saco, foram de férias e o ruído mediático do caso serenou, deixou de ser «caso». Talvez um dia venha a ser caso de estudo sobre o pior das manifestações da falta de pudor e da escassez de escrúpulos nalguns meios.
Poucos dias antes, caíra o Carmo e Trindade com o anúncio de uma, pelos vistos, tenebrosa «lei da rolha», através da qual a Autoridade Nacional de Protecção Civil teria «proibido» os comandantes de operações de socorro de prestar informações sobre incêndios florestais, que passariam a ser concentradas em dois encontros diários com a Imprensa (briefings), na própria sede nacional da ANPC.
O caso foi alçado à categoria de emergência nacional, com o líder do PSD, na sua eterna e deprimente pose de primeiro-ministro no exílio, a clamar contra o Governo e o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses (ele próprio uma bem conhecida figura do PSD) a denunciar um ataque à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa. Quase nos comovia…
Apesar de parecer já ter caído, o caso ainda hoje dá que pensar, sobretudo pelo que poderá ser interpretado como manifestação de uma certa cumplicidade dos media com o que não terá passado de uma querela política artificial, favorecida pelo contexto sazonal de dramatização dos incêndios – este ano exacerbado pelas ocorrências graves já sobejamente conhecidas.
A generalidade dos media «foi atrás» da ideia de que fora instituída, realmente, uma proibição de os comandantes de operações prestarem informações aos jornalistas. No entanto, ela não consta do comunicado da ANPC, que estabelece uma rotina de dois briefings com os órgãos de comunicação social e esclarece que os comandantes operacionais ficam assim mais libertos para conduzir as operações de socorro – na verdade a sua missão essencial.
De resto, as regras sobre a realização de briefings estão claramente estabelecidas, há muito tempo, na Directiva Operacional Nacional que, em cada ano, aprova o Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Florestais (DECIF), mantendo-se no essencial com a mesma estrutura os os mesmos procedimentos e redacção, inovando apenas nalguns aspectos operacionais.
Há muito tempo que nessas DON se lê que cabe ao comandante operacional nacional a competência para «determinar a realização de briefingscom os órgãos de comunicação social» e que aos comandantes operacionais distritais também cabe promover encontros idênticos nos teatros de operações, «de acordo com as orientações superiores». Era assim até no governo de Passos Coelho, agora tão preocupado com a liberdade de expressão dos comandantes.
Que aconteceu de novo?
Antes da «lei da rolha», um pico crescente de dramatização mediática dos incêndios, com a presença quase constante de comandantes de operações de socorro a fazer «pontos de situação» para os «directos» televisivos e radiofónicos de hora a hora, pouco ou nada acrescentando de novo e suscitando, não raras vezes, a dúvida sobre a real utilidade dessa «informação».
Em muitas ocasiões, a constância de comandantes pendurados nos microfones dos meios audiovisuais correu o risco de transmitir a imagem de que todo o país estava em chamas.
E talvez não deva descartar-se a possibilidade de, em certos teatros de operações mais complexos, o excesso de presença de comandantes nos briefings locais ter prejudicado a condução do combate.
Uma vez «instaurada» a dita «lei da rolha», o que mudou?
Continuou a verificar-se a ocorrência de incêndios, alguns bastante destrutivos, mas nem as redacções nem os repórteres no terreno deixaram de ter acesso a informações precisas sobre os acontecimentos, citando mesmo comandantes operacionais ou de corpos de bombeiros, cruzando-as com os dados fornecidos através do sistema habitual de comunicação da ANPC, incluindo os agora famosos briefings-tampão.
Será porventura de concluir que a notícia da falta de acesso à informação era afinal exagerada e que as denunciadas limitações desse acesso atingindo especialmente os órgãos de informação local e regional não se concretizaram. Mas não consta que os media o tenham tornado claro perante o público.
Para todos os efeitos, incluindo os de propaganda política que tão fácil e tão acriticamente contamina o campo jornalístico, a «lei da rolha» continua em vigor. Talvez por desleixo dos jornalistas; talvez por ser natural da época estival. Veremos como correrá o Outono, e o Inverno…
*AbrilAbril | Foto: O líder parlamentar do PSD, Hugo Soares (à esquerda), no plenário da Assembleia da RepúblicaCréditosJoão Relvas / Agência LUSA
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