Tenho com os incêndios uma relação muito próxima, delicada e complexa porque tive, durantes anos, responsabilidades institucionais, ao nível do Estado, sobre esta matéria. Fui fundador de uma associação de bombeiros, sendo o seu sócio número um.
João de Almeida Santos | Tornado | editorial
Sofri na pele a morte de seis bombeiros – um era meu amigo e vizinho – na minha terra no combate a um incêndio. Fui presidente de uma assembleia municipal durante oito anos e da assembleia de uma CIM durante sete. Sim, tudo isto. Mas fico, pelo que sei e pelo que vejo, indignado com uns indivíduos que aparecem cada vez mais nas televisões, largos minutos, a pedirem responsabilidades pelas tragédias, pelos incêndios, pelas mortes. Estes indivíduos a que me refiro têm, eles próprios, responsabilidades sobre os territórios que governam, porque foram eleitos para isso. E uma dessas responsabilidades consiste precisamente em promover a prevenção e garantir meios capazes de evitar e combater as calamidades.
Agir pela prevenção!
Trata-se, de facto, de um dos principais deveres destes indivíduos. E foi por isso que, quando fui presidente de uma assembleia municipal, dizia repetidas vezes ao então presidente da câmara: “Cuida da prevenção do nosso território! A prevenção é essencial e até custa pouco ao orçamento camarário!”. Dizia-o por experiência própria e até porque a câmara tinha serviços para isso e possuía um serviço concelhio de protecção civil. E porque considerava que a primeira responsabilidade de cuidar do território, das matas e dos meios para o combate, articulando-se com a protecção civil distrital e os bombeiros do concelho e da região, era precisamente da câmara municipal. Na verdade, o número de associações de bombeiros existentes no país é cerca de 1,5 vezes o número de câmaras municipais, sendo, pois, possível com uma política de cooperação e de adequado financiamento desenvolver programas de prevenção e de combate a nível concelhio, distrital e nacional eficazes. Programas de prevenção até com as próprias associações de bombeiros, desde que financiadas!
Mas, desde que ocorreu a grande tragédia humana, o que é que se tem visto, e não só em Pedrógão? Presidentes de câmara, aproveitando a comoção, a chutarem, como Pilatos, para cima as responsabilidades, lavando as mãos. Como se na maior parte dos incêndios houvesse evidência de intencionalidade e de responsabilidade directa do Estado! Havendo tragédia, logo terá de haver culpado directo e pagador. E o mais simples e fácil é pedir ao Estado que pague, já que o dinheiro cai do céu directamente para os cofres públicos! A pergunta legítima é esta: os que governam os territórios não têm responsabilidades? São também eles meras vítimas de responsabilidades alheias?
Todos sabemos que há graves responsabilidades do Estado por não haver boa ordenação do território florestal, prevenção organizada, disseminada e eficaz e um competente dispositivo de combate, a nível nacional. E que há muito a fazer, sem atirar, como sempre, legislação e mais legislação para cima do problema! Há falhas, sem dúvida, mas não é possível atribuir intencionalidade directa na tragédia (salvo aos incendiários), como se fosse possível perguntar, em matéria tão complexa como esta, quem foi o sujeito que puxou da pistola e deu o tiro! Nem sequer é fácil atribuir responsabilidades por negligência. Logo, culpa directa, para logo exigir imediato pagamento de indemnizações provenientes dos bolsos dos contribuintes. Floresta, colheitas, casas… mas não há seguros e responsabilidade individual ou concelhia? Tem de ser o contribuinte a pagar sempre isso? Na verdade, a culpa acabará por ser sempre atribuída a quem tem possibilidade de pagar! O mesmo de sempre: dos incêndios aos bancos!
Onde reside a culpa?
Sim, tudo isto é muito politicamente correcto, muito de esquerda (e de direita quando politicamente lhe convém)! Do mal tem sempre a culpa a sociedade e, por isso, ela tem de pagar. É a teoria do bom selvagem. É a sociedade que corrompe o indivíduo, que naturalmente é bom. E, se assim é, que pague por todos os males. Morreram 64 pessoas. Uma gravíssima tragédia. Tem de haver um culpado, para pagar por isso. A hipótese de haver também erros pessoais das próprias vítimas – que me perdoem pela formulação em tese – é inadmissível, intolerável, injusta e cruel porque as vítimas são vítimas. Imagine-se que esta lógica era aplicada aos acidentes rodoviários. A culpa é das estradas, da sinalização, do código da estrada, das fábricas de automóveis, dos vendedores de bebidas alcoólicas…! No fim, a única culpada é a sociedade e é ela que deve indemnizar as famílias dos sinistrados. Há casos gravíssimos de falhas nas infraestruturas, sim! Mas a responsabilidade individual ocupa um lugar relevante na hierarquia das causas!
Sim, há muito a reformar nesta matéria. Mas é inaceitável a lógica do discurso dos primeiros responsáveis pela protecção civil concelhia e pelo próprio território. Não têm culpa de não ter tratado do seu território e das florestas, porque a culpa é do Ministro da Agricultura e da Ministra da Administração Interna. Numa palavra: do Terreiro do Paço! Como sempre! A tal intencionalidade: procure-se o culpado do incêndio, porque esse culpado nunca será o presidente de câmara que não cuidou das florestas concelhias, da limpeza dos aceiros, da construção de pontos de água, da criação de equipas de vigilância e primeira intervenção, da articulação e financiamento dos bombeiros, etc., etc., nem do dispositivo concelhio de protecção civil. Foi o que, recentemente, ouvi da boca de um presidente de câmara que se mostrou perplexo sobre o que aconteceu no seu próprio território, como um autêntico marciano acabado de aterrar. É claro que apaguei logo a televisão, tal foi o nojo. Mas isto mesmo tenho ouvido de outros que lavam as mãos como Pilatos. Faltam meios e os que existem não foram bem usados, pela protecção civil nacional, não pela sua. Ele, que é responsável pelo concelho, não tem qualquer responsabilidade, sobretudo se for ano de eleições autárquicas.
Pois, na minha perspectiva, se, em nome dos que morreram, se tiver de imputar responsabilidades, os Presidentes de Câmara não poderão auto-excluir-se porque também eles são responsáveis pela prevenção e pela eficácia do combate! Estes papagaios não assumem humildemente a sua parte de responsabilidade, não percebem que também existem seguros individuais para garantir valores e sobretudo não percebem que o contribuinte não pode estar sempre a ser acusado e condenado a pagar todas as culpas, incluídas as da própria natureza. E deles próprios, sendo certo que de seguros para cobrir danos nunca se ouve falar!
Já não os posso ouvir e muito menos os enjoados dos jornalistas que os entrevistam com ar compungido, fazendo o jogo de quem tem como especialidade passar culpas para os que podem pagar.
Milhões em jogo!
Haja atenção ao que se está a passar com os fogos este ano, à bolina da tragédia, com a tentativa de a imputar a um culpado para que daí possam resultar indemnizações de milhões do único que os tem (é um modo de dizer!) e que pode pagar, o Estado, e, por conseguinte, o contribuinte. O valor de que se fala é altíssimo e o controlo sobre o dinheiro absolutamente necessário. Quem sabe do que fala é o padre de Pedrógão, Júlio dos Santos: não vê o dinheiro do Estado, diz que se fazem umas contas, umas contas, mas que o dinheiro não chega! Se calhar tem razão. Só que não se lembra que se o Estado tem complexos sistemas de controlo, o mesmo não se passa com a União das Misericórdias, que recebeu, ao que consta, um milhão e duzentos mil euros dos que fizeram o famoso concerto. O senhor Prior não mencionou este dinheiro… Mas devia!
No meio de tudo isto andam os bombeiros, num sistema que há que reformar a fundo em articulação com uma política de reforma da floresta e com a implementação de uma verdadeira política de prevenção. Jaime Marta Soares, o Presidente da Liga, em vez de se pôr também ele a fazer 28 perguntas (a si próprio), como se fosse um agente externo à protecção civil, e a fazer discursos de circunstância, bem poderia, até pela sua experiência como bombeiro e como presidente de câmara, empenhar-se numa reforma profunda do sistema que envolvesse Governo, Liga e Autarcas. O que me assusta é que quem anda sempre com a mão na massa (nesta matéria de incêndios) se ponha permanentemente de fora quando há problemas e comece a fazer perguntas ao Padre Eterno sobre os desastres que ele próprio não conseguiu evitar!
O que verdadeiramente é inaceitável é esta conversa do passa culpas, sobretudo daqueles que têm a primeira responsabilidade de zelar pelos territórios que governam por vontade popular! Já agora, e vista a relevância do assunto, os munícipes dos territórios afectados gravemente pelos incêndios deveriam introduzir esta variável na decisão de dar o seu voto: o que é que a Câmara cessante fez em matéria de prevenção e em articulação com a rede de bombeiros que serve o seu concelho para evitar os incêndios? E os primeiros a ser escrutinados deveriam ser precisamente os que se apressaram a passar rapidamente as culpas para o Terreiro do Paço!
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